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Gielton



Escritora




Entre namoro e noivado, foram mais de cinco anos. Casal admirado que "esperançava" a vida dos outros como espelho de sonhos pessoais. Tudo corria segundo o figurino. A vida no interior do sertão mineiro a esperava: dona de casa, filhos, família...


Só que a ânsia por outros mundos revirou o prognóstico. Ah, por que as mulheres precisam estudar? Viu? Nisso que dá!


Foi a conta de pisar no chão da universidade e um mundo de caminhos se abrir. Também, foi mexer com teatro! Onde já se viu? Um antro de perdição!


Seu décimo sentido projetava longe, longe outras perspectivas. Ainda nebulosas, mas magnéticas como forças ocultas, a impeliram para um lugar conhecido, apesar de incerto: a metrópole.


A mente consciente da pequenez da trilha demarcada naqueles cafundós, o desejo pulsante pelo fervor do mundo, os sonhos projetados e certa liberdade intrínseca não deixaram dúvida: largou o noivo, embasbacado, à beira do altar.


No lugarejo, o espanto abriu espaço para devaneios. A mesquinharia levou a jovem de família para o puteiro. Afinal, atriz e prostituta são uma coisa só. Escolheu a vida fácil, diziam línguas venenosas.


Que nada, seu palco foi a sala de aula. Seu público, estudantes encantados. Atuou com maestria entre carteiras e pessoas. Estudou e pesquisou movimentos sociais. Aprofundou os entendimentos e abriu portas para a compreensão de si e do outro.


Aposentou-se.


As lembranças da infância, os afetos cultivados e a terra plantada a trouxeram de volta. Hoje, em sua casa, o quintal e o jardim, cuidados com mãos de escritora que agarra o lápis e solta ideias, floresce.


Recentemente reencontrou Afonso, o ex-noivo. Enlaçou outra noiva e, como no figurino, germinaram três crias. Estavam à beira do rio. Parentes presentes entre copos de cerveja e tira-gostos, instigaram tal encontro. Ele apresentou lembranças vivas e marcantes daquele tempo: recitou em público versos escritos ao punho dela. Sorriu afetuosamente, enquanto ela, espantada, nem se lembrava de suas próprias palavras.


O WhatsApp da moça tocou cedo no dia seguinte. Foi delicado, sensível e amável. Propôs um encontro para abrir o baú de guardados.


Deveria ela aceitar o convite?


Assim, a vida! Esperando o inesperado.

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Atualizado: 17 de fev.

Gielton







Àquela hora, o sol morno nos chamou para um passeio à beira-mar sem protetor solar, boné e óculos escuros. Assim é bom: livre e solto.


No caminho de vinda, perto de Emboaca, muitas piscininhas se formaram na praia, bem na borda da estrada. Que decisão feliz, rever este local com a calma que ele merece!


Estivemos, os dois, conectados entre nós e através de cada um. Juntos e separados. Embelezados pela natureza exuberante, cada qual sentiu em si a energia do instante e resvalou no outro a alma encantada. Os estados se somaram.


A tarde caía suave e plena. Dona de si, abraçava quem se deixasse abraçar. Era só estar. Nada mais. A linha da conexão voou longe. Conchinhas foram o elo entre, ela, a avó, e seus netos. Um presente catado um a um. Cada peça escolhida com o desejo pelo outro.


O Sol esbanjava sua força enquanto enfraquecia sua luz. Nem sempre o mais intenso é o mais forte, pois o estado faz a arte, e arte não se mede em potência. A belezura preenche. Não há o que fazer, além de sentir.


Nos curvamos diante do espaço e tempo. A demora não perguntou quanto tempo falta. O relógio, muito menos, não respondeu. Não era preciso, bastava deixar vir. A intuição conduziu, sem erros, a hora do adeus, quando já quase escurecia.


Assim, a vida! Felicidade se mede em instantes.



Mestre Ulisses Mendes em sua mesa de trabalho



Atravessamos o interior da cozinha e alcançamos o quintal. Casa simples e humilde, sem luxos ou espaços sofisticados. Ao fundo, fomos apresentados aos fornos a lenha onde são queimadas as peças. Estávamos em Itinga, cortada ao meio pelo Jequitinhonha.


Um cientista do empirismo, com técnicas refinadas de catalogação e controle de variáveis. Do pó, extraído de duras rochas com pilões de pedra, experimenta a tintura que só será “aceita” depois de queimada junto ao barro. Seu primor pela qualidade jamais aceitaria pincelar uma peça após o forno. “Não fixam e soltam com o tempo”.


Lentamente fui entendendo que por trás daquele homem com alguns cabelos brancos, ou melhor, por dentro daquele artista, como ele próprio se designa, está guardada boa parte da

sabedoria da existência. Pronta para se expandir mundo afora. Sorte a nossa!


“Preciso fazer meus retiros”. Sim, são retiros espirituais descolados de igrejas ou crenças. Tempo de silêncio, tempo de contato com o íntimo, tempo dedicado ao respeito com a alma. Se embrenha mata adentro para encontrar consigo mesmo, com curupiras e outras entidades.


Às vezes penetra alguma ruína e, respeitosamente, sem retirar uma panela, tacho ou talher do lugar, imagina cenas cotidianas, momentos da vida simples. É mais do que inspiração, é conexão direta entre o passado convertido, no futuro breve, em barro moldado que eterniza o agora.


“Sou artista e, por consequência, defendo a preservação”. Assim, seu pensamento ecológico, ambiental e holístico se revela a cada frase, a cada expressão. Por alguns é visto como louco. São aqueles incapazes de compreender o que é estar além de normas e padrões estabelecidos.


Sr. Ulisses Mendes me impactou profundamente. Está ainda por detrás da cortina a sombra de tamanha admiração. Talvez o respeito consigo mesmo, com sua arte, vendida sim, pois precisamos sobreviver, mas não expropriada ou entregue a qualquer custo. Não falo de custo financeiro, mas de custo de existência. Quanto vale o tempo? Sem medidas, é claro. Mas, a ideia concebida e transformada em escultura vinda da terra pelo barro, transcende os minutos do relógio.


Tentaram transformá-lo em artista produtivo com horários a cumprir. Foi no Sebrae, depois de um curso de aperfeiçoamento. Entrou na vibe. Acordava, trabalhava até tal hora, almoçava, retornava… Tempos depois percebeu: “isso não é para mim”. Claro que não daria certo, não é Sr. Ulisses? Segundo ele próprio, não veio ao mundo para ser produtivo como o capitalismo impõe. Veio para expressar sua forma de vida através da arte. A arte é, sem dúvida, uma forma de resistência.


Uma pessoa espiritualizada como Mestre Ulisses Mendes não precisa de religião para se conectar aos espíritos. Compreende a religião como forma de dominação, apesar de reconhecer sua importância para as pessoas. Nos encontramos nessa ideia. Ali, sentado em seu banquinho, proferia sua palestra. Aparentemente despretensiosa, por trás de sua pequena bancada de trabalho, nos conduzia com suas palavras e gestos a uma ampliada compreensão do huma99no.


Foram duas horas de conversa, de entrega e doação, sem preocupação em receber de volta. Tamanha generosidade nos deixou “sem graça” até para sondar o valor de qualquer obra. Que pena! Seria uma forma de materializar esse encontro.


Não faz mal. A conversa larga de dimensões que contornam as fronteiras do imaginário e nossas trocas despretensiosas ficarão para sempre em nossos corações.


Obrigado Itinga.

Obrigado Vale.

Obrigado Mestre Ulisses Mendes.


Assim, a vida! Arte para transcender.

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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