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Atualizado: 18 de abr. de 2024

Gielton


Linda mesa de café da manhã com pão integral





Tinha lá meus vinte e poucos anos quando formei minha primeira república. Éramos três e dividíamos uma casa. Um quarto para cada integrante. Os espaços coletivos eram compartilhados.


Eu e Jorge éramos vegetarianos. Juntos, preparávamos nosso próprio sustento usando alfaces, couves e manjericões retirados, no instante, da horta que cultivávamos no quintal. Produzíamos nosso exclusivo pão integral e nos deliciávamos em almoços às duas da tarde. Maravilhoso!


Mas, nem tudo são flores. O problema era a organização da cozinha. Depois do almoço, Jorge se recusava terminantemente a ajudar na lavação da louça. Entre fazer o trabalho sozinho e me submeter ao seu jeito de ser, subjuguei-me contrariado. "Tacávamos" tudo no tanque do lado de fora da casa após o almoço e nos enfiávamos cada um no seu dormitório.


Lecionávamos na mesma escola e, a pé, retornávamos juntos para casa depois do último sinal do turno da manhã. Embolados à criançada, rolávamos as ladeiras dos calçamentos históricos de Diamantina.


Só de pensar naquela "louçaiada" no tanque me dava calafrios de pânico ao abrir a porta de casa. De fato, a limpeza das vasilhas era feita a dois, assim como o almoço, mas o mau humor só me abandonava quando degustava a primeira garfada.


Muito tempo se passou e nesses longos anos me dediquei à minha profissão, à vida em família, viagens, cultura, amigos, lazer... Sinto-me privilegiado! Raramente cozinhei desde então. A jornada excessiva nos obrigou a contratar quem o fizesse por nós.


Hoje, aposentado, pesquiso receitas na Internet, compro os mantimentos e "meto" a mão massa. Essa semana fiz carne de sol fritinha (deixei o vegetarianismo) acompanhada de gratinado de batata e queijo com alecrim colhido do nosso pequeno terreno afastado da capital.


Sentei-me à mesa sozinho. Enquanto as cadelas espreguiçavam no chão frio para refrescar a quentura do dia, saboreei aquele momento para além das papilas gustativas. Viajei no tempo, as lembranças circularam, tracei linhas imaginárias em sequência como em uma película, deixei a alma flutuar levemente. Senti o prazer de cuidar de mim e agradeci, a cada garfada, por essa existência. Se há outras, não sei. Também, não importa.


Só para registrar: quase sempre lavo os pratos, panelas, tigelas e talheres logo que termino a refeição.


Assim, a vida! Ciclos que vão e vêm!


  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Gielton


Sala de aula dos anos 80






Estava com dezessete anos. As dimensões do amor eram infinitas e ilimitadas. Amava tudo e todos. Uma espécie de explosão da alma que reivindicava, ao mesmo tempo, justiça social e paixão individual. Um querer amplo e irrestrito. O anseio por intimidades desabrochava feito vulcão em erupção. Tudo meio misturado em uma sopa de desejos.


Que sorte a minha estar, nessa época, em sintonia com minha turma de escola, onde transitavam em mão dupla afetos para além dos muros e corredores. Ser parte desse grupo era uma forma, de estar e ser, de respirar com inspiração, de trocar sem vantagens, de crescer na medida do seu tempo.


Zuamos muito uns dos outros. Aporrinhávamos o ponto fraco de fulano, muitas vezes era eu mesmo, para depois largarmos! Uma espécie de bullying sem exageros. Sacaneávamos professores que não davam conta de si mesmos. Fizemos até greve de cantina para baixarem os preços dos salgados. Foi a glória! Enfrentamos diretores autoritários e disciplinários desajeitados.


Em véus de noiva acampamos! Fizemos música ao luar. Esquentamos fogo. Nos deleitamos em cachoeiras geladas e poços negros do rio Cipó. Em um desses fomos expulsos por invadir terras alheias. Imagina, quatro adolescentes com rabinho entre as pernas levantando acampamento diante de capangas armados?


O futebol era a marca da época. Times rivais permutavam vitórias e derrotas. Depois da pelada, cocas e guaranás eram compartilhados nos mesmos copos, sem rusgas dos pontapés dados ou recebidos. Aqueles que não se davam bem com a pelota, que não era o meu caso, sofriam seus quinze minutos de goleiro e olhe lá!


Éramos bons de notas, estudiosos e dedicados. Claro que colávamos. Mais para conferir do que para lucrar. Tínhamos orgulho de nós mesmos e ninguém queria manchar o nome de bobeira.


Ontem nos reencontramos depois que a linha do tempo percorreu mais de quarenta anos. Encontro para lavar a alma, deixá-la bem passada e pronta para seguir amando. Assim me senti!


Foi como um buraco no tempo. Mais do que relembrar histórias engraçadas e reviver no semblante de cada um, com seus trejeitos e tiques que permanecem, foi a sensação de estar lá quarenta anos antes. As lembranças foram se entrelaçando em sinapses elétricas e descarregando nos corações que palpitavam felizes pelo instante interminável. Dizem que o sentimento é atemporal. Eu confirmo.


O vínculo que formamos foi um laço tão forte que este reencontro ativou memórias afetivas guardadas nas nossas profundezas, que emergiram e foram expressas pelos sorrisos e abraços que nos demos, como se o ontem fosse agora.


Obrigado amigos de sempre!


  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Gielton



Estrada em espiral com árvores, rios e montanhas

Foi uma tarde triste. Era uma dor que nunca havia sentido. Como se tivessem arrancado algo do meu âmago, a que me pertencia. Queria chorar. Não consegui. Aspirei as lágrimas para dentro do globo ocular e balancei a cabeça para espalharem. Quem sabe assim, secam mais rapidamente e dissolvem meu sofrimento.


Não queria acreditar. Disfarçava como se não fosse verdade. Era ainda muito jovem para perder um dente e sair com esse enorme orifício na gengiva. Porque diabos meus ossos foram corroídos a esse ponto? Como as bactérias cavaram um buraco tão grande na raiz? Sem sustentação, qualquer coisa cai.


Saí do consultório com um dos molares embrulhado em um guardanapo dentro do bolso de moedas da calça jeans. Para quê? Recordação? Que "merda" de lembrança seria essa?


Deixa de ser imbecil e vai viver.


Vivi. Muitos outros se foram nesses longos anos. Habituei à falta, mas a tristeza atualizou a cada um arrancado ao alicate. Não os embrulhava mais no lenço de papel. Por alguns chorei lágrimas face abaixo. Por outros, engoli o desgosto.


Estou prestes a morder de novo! Passo a língua e sinto os pinos de metal boca adentro. Enxertaram osso de boi na cavidade desossada e, com uma broca, cravaram pares de bucha e parafuso de titânio na nova estrutura. Um monte! Minha arcada está agora definitivamente implantada.


Os pré e pós molares já foram moldados e na próxima semana tiro a prova.


Ainda não sei o que sinto.


Assim, a vida! Segue em espiral.


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>


Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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