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  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Atualizado: 17 de fev.

Gielton







Àquela hora, o sol morno nos chamou para um passeio à beira-mar sem protetor solar, boné e óculos escuros. Assim é bom: livre e solto.


No caminho de vinda, perto de Emboaca, muitas piscininhas se formaram na praia, bem na borda da estrada. Que decisão feliz, rever este local com a calma que ele merece!


Estivemos, os dois, conectados entre nós e através de cada um. Juntos e separados. Embelezados pela natureza exuberante, cada qual sentiu em si a energia do instante e resvalou no outro a alma encantada. Os estados se somaram.


A tarde caía suave e plena. Dona de si, abraçava quem se deixasse abraçar. Era só estar. Nada mais. A linha da conexão voou longe. Conchinhas foram o elo entre, ela, a avó, e seus netos. Um presente catado um a um. Cada peça escolhida com o desejo pelo outro.


O Sol esbanjava sua força enquanto enfraquecia sua luz. Nem sempre o mais intenso é o mais forte, pois o estado faz a arte, e arte não se mede em potência. A belezura preenche. Não há o que fazer, além de sentir.


Nos curvamos diante do espaço e tempo. A demora não perguntou quanto tempo falta. O relógio, muito menos, não respondeu. Não era preciso, bastava deixar vir. A intuição conduziu, sem erros, a hora do adeus, quando já quase escurecia.


Assim, a vida! Felicidade se mede em instantes.

 


Mestre Ulisses Mendes em sua mesa de trabalho



Atravessamos o interior da cozinha e alcançamos o quintal. Casa simples e humilde, sem luxos ou espaços sofisticados. Ao fundo, fomos apresentados aos fornos a lenha onde são queimadas as peças. Estávamos em Itinga, cortada ao meio pelo Jequitinhonha.


Um cientista do empirismo, com técnicas refinadas de catalogação e controle de variáveis. Do pó, extraído de duras rochas com pilões de pedra, experimenta a tintura que só será “aceita” depois de queimada junto ao barro. Seu primor pela qualidade jamais aceitaria pincelar uma peça após o forno. “Não fixam e soltam com o tempo”.


Lentamente fui entendendo que por trás daquele homem com alguns cabelos brancos, ou melhor, por dentro daquele artista, como ele próprio se designa, está guardada boa parte da

sabedoria da existência. Pronta para se expandir mundo afora. Sorte a nossa!


“Preciso fazer meus retiros”. Sim, são retiros espirituais descolados de igrejas ou crenças. Tempo de silêncio, tempo de contato com o íntimo, tempo dedicado ao respeito com a alma. Se embrenha mata adentro para encontrar consigo mesmo, com curupiras e outras entidades.


Às vezes penetra alguma ruína e, respeitosamente, sem retirar uma panela, tacho ou talher do lugar, imagina cenas cotidianas, momentos da vida simples. É mais do que inspiração, é conexão direta entre o passado convertido, no futuro breve, em barro moldado que eterniza o agora.


“Sou artista e, por consequência, defendo a preservação”. Assim, seu pensamento ecológico, ambiental e holístico se revela a cada frase, a cada expressão. Por alguns é visto como louco. São aqueles incapazes de compreender o que é estar além de normas e padrões estabelecidos.


Sr. Ulisses Mendes me impactou profundamente. Está ainda por detrás da cortina a sombra de tamanha admiração. Talvez o respeito consigo mesmo, com sua arte, vendida sim, pois precisamos sobreviver, mas não expropriada ou entregue a qualquer custo. Não falo de custo financeiro, mas de custo de existência. Quanto vale o tempo? Sem medidas, é claro. Mas, a ideia concebida e transformada em escultura vinda da terra pelo barro, transcende os minutos do relógio.


Tentaram transformá-lo em artista produtivo com horários a cumprir. Foi no Sebrae, depois de um curso de aperfeiçoamento. Entrou na vibe. Acordava, trabalhava até tal hora, almoçava, retornava… Tempos depois percebeu: “isso não é para mim”. Claro que não daria certo, não é Sr. Ulisses? Segundo ele próprio, não veio ao mundo para ser produtivo como o capitalismo impõe. Veio para expressar sua forma de vida através da arte. A arte é, sem dúvida, uma forma de resistência.


Uma pessoa espiritualizada como Mestre Ulisses Mendes não precisa de religião para se conectar aos espíritos. Compreende a religião como forma de dominação, apesar de reconhecer sua importância para as pessoas. Nos encontramos nessa ideia. Ali, sentado em seu banquinho, proferia sua palestra. Aparentemente despretensiosa, por trás de sua pequena bancada de trabalho, nos conduzia com suas palavras e gestos a uma ampliada compreensão do huma99no.


Foram duas horas de conversa, de entrega e doação, sem preocupação em receber de volta. Tamanha generosidade nos deixou “sem graça” até para sondar o valor de qualquer obra. Que pena! Seria uma forma de materializar esse encontro.


Não faz mal. A conversa larga de dimensões que contornam as fronteiras do imaginário e nossas trocas despretensiosas ficarão para sempre em nossos corações.


Obrigado Itinga.

Obrigado Vale.

Obrigado Mestre Ulisses Mendes.


Assim, a vida! Arte para transcender.

 
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Gielton


A brisa esfriou o tempo e nos expulsou bem antes do que pretendíamos. Ainda bem, pois abraçamos uma experiência culinária e existencial sem igual.


Maria D'Ajuda, esse é o nome dela. D'Ajuda, tão simbólico, tão representativo, tão significativo... Separou-se, por própria escolha, quando o caçula dos oito filhos tinha menos de 10 anos. Aprumou a coragem e elegeu a incerteza. O marido sumiu. Nenhuma ajuda nesses mais de 50 anos.


Pode até ser uma história como a de muitas mulheres negras brasileiras. Filhos cuidam dos irmãos menores enquanto, nas claras horas do dia, se ausentam. Varrendo, lavando e cozinhando em casa de patroas, trazem, quando muito, o escasso leite das crias. Sozinhas, extraem da esperança a força para matar seu leão diário.


Parece algo corrente com o qual até nos habituamos. Banalizar a carência alheia expulsa de nossos corações a compaixão. Endurecidos, nem notamos nosso semelhante ser humano.


Não, Maria D'Ajuda é digna de admiração. Exemplo de vida simples em terra distante, parcos recursos e baixo letramento. Abreviou da vida sabedoria. Do anos fez aprendizado.


A neta, ainda criança, prenunciava.


— Quando crescer quero ir para a faculdade.


— Que isso menina, tire isso da cabeça... onde já se viu uma coisa dessas?!


Expropriada por anos em pousadas de empreendedores sulistas que, aos olhos desatentos, romanticamente trocam a vida agitada da capital pela calmaria da beira mar, D'Ajuda seguiu sua sina de "a quem de direito carrega essa terra com todo respeito", como diria Gilberto Gil em Índigo Blue.


Após a última demissão arquitetou um pequeno restaurante na varanda de sua casa. Soube captar o agrado de sabores culinários e estéticos daqueles que vinham em temporadas. A comida, uma delícia, o espaço, agradabilíssimo!


Quando a copa do mundo veio ao Brasil, aquela neta estudiosa e dedicada a pouco ingressara na Universidade Federal do Sul da Bahia. A primeira da família, entre irmãos, pais, tios e avós a cursar o superior do ensino médio. Quanta honra lhe coube. Quanto orgulho da avó. Quão emocionante foi ouvir D'Ajuda contar essa história. Quão inesperado seria, se não fosse...


Sábia Maria D'Ajuda sabe quem a ajudou... Tempos bons de políticas que miraram as netas e filhas das empregadas e ofereceu essa oportunidade única a muitas famílias. Parece pouco, mas não. Sentir de perto engrandece, os pelos arrepiam, o coração amolece!


Prosear com Maria D'Ajuda, saborear seu arroz de polvo ao ponto e conhecer de dentro essa história entrelaçada, transformou nosso dia em puro encantamento.


Assim, a vida! O pouco que muito é!

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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