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  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Detalhes da face de uma leoa




Tudo começou com um pequeno sangramento. Como farelos de pão, as gotículas de sangue marcavam o trajeto. Intuía que por ali havia passado.


Dias depois o apetite voraz prenunciava algo. Estranho! De onde vinha tanta fome? São os hormônios. Só pode ser, explicava a mim mesmo por uma intuição dita ao pé do ouvido. Ela anda tão serena. Será? Pressenti corretamente?


Claro igual branco neve e límpido no pensamento, a certeza fincou sua bandeira sobre a dúvida. As tetas crescidas e a barriga aumentada eram as provas que faltavam para o observador atento aos detalhes. Está grávida! Mas como? Onde?


O ultrassom fechou o cerco. Com ele, o de dentro se "afora" em preto e branco meio embaçado. Porém, o suficiente para afirmar, são entre oito e dez filhotes. Minha cadela pulou a cerca, ou talvez fez através dela. Dizem que é possível.


Sabia que a gravidez dos cães dura apenas dois meses? Nem deu para preparar muito. Deixei-me guiar pela intuição. Ela, a cadela, disse-me tudo.


Escolheu o canto do conforto onde já passou horas e horas ao meu lado enquanto eu, ligado à tela, produzia. Apontou que a toalha com a qual forrara o chão não estava adequada. Escorregava demais. Inusitadamente puxou com os dentes, de dentro de uma sacola, um pequeno colchonete. Tinha razão, era mais firme e macio.


YouTube me ensinou: evite intervir no parto. Aja somente se necessário. Mesmo assim comprei luvas, deixei a vista a tesoura e uma fita laranja da caixa de costura para o caso de amarrar o cordão umbilical. Serei parteiro oficial pela primeira vez. Às vezes é difícil conter o medo. E se... E se... Eram tantos que a possibilidade do tempo futuro borbulha a mente no agora. Tentava me acalmar. Vai dar tudo certo.


Tadinha, ficou sem lugar no dia "d". Li em seu semblante o desconforto. Acolhi. Acarinhei. Fiquei perto. Deitou-se sobre o colchonete. Intuí sua paciência. Como sabe? Seu instinto dizia sobre espera. Calma a hora vai chegar. Eu é quem não sabia aguardar. Se passar dessa noite, levo a Maia ao veterinário.


Não derramou uma lágrima sequer, mesmo que as contrações fossem fortes, quando o primogênito apontou sua cabecinha na vulva. Escorregou como quiabo e quando assustei já estava escarrapachado sobre o colchãozinho. Era seu primeiro e sabia tudo o que fazer. Como assim? Instinto.


Lambeu, lambeu até que a fina película envolvendo todo o recém nascido se rompesse. Comeu. Puxou o cordão lentamente até vir de seu ventre a placenta. Comeu. Os caninos agiram rápido. Vindo do umbigo do filhote cortou o cordão. Lambeu todo o sangue assepticamente. Cuidou da limpeza antes do próximo. Lambeu e lambeu sua cria.


Em menos de dez minutos tudo se repete. Vontade de dizer: quanta sabedoria, quanta força, quanta entrega... Instinto! Ao fim de algumas horas a exaustão se anuncia. Deitou-se para descansar enquanto cada um dos oito filhotes mamava em uma das mamas.


Quanta honra presenciar essa pujança da natureza!


Assim, a vida! Que se anuncia.




Gielton




Ele agora é pai de uma linda menina. Recém nascida do amor.


O amigo prepara-lhe um presente especial. O embrulho, até bem grandinho, trás algo inesperado. Surpreende-se. Uma muda de...


— Ja-bo-ti-ca-bei-ra.


Completa o amigo com um sorriso sarcástico.


Ele, sem entender, flexiona os ombros e abre as mãos.


O amigo explica numa frase:


— Ela demora quinze anos para dar!


E você, conhece? Há pequenas brincadeiras que, além de estarem em desuso, tornaram-se inadequadas.


Não me gabo, gabando assim mesmo! Tive pouco ciúmes da minha filha. Talvez, por acreditar que as crias são criações para o mundo ou por esconder esse apego em profundezas tão profundas que o fôlego para emergir acabou no meio do caminho.


Só que...


Hoje espanto gaviões, quer dizer, cães de qualquer raça ou tamanho, branquinho ou mesclado, manso ou bravo. Encaro mesmo!


Outro dia, espremido como uma minhoca, um cachorro atravessou pela gretinha do portão. Vi a cena. Ficou serelepe com nossa Maia. Espantei com um cabo de vassoura em riste. Não é que o atrevido, diante desse homenzarrão, rosnou. Engrossei a voz:


— Casca fora daqui seu pilantra!


O pior é que a Maia se engraçou toda. A corrida conjunta pela extensão da cerca, um de dentro e outro de fora, pode parecer brincadeira de criança. Que nada, puro feitiço de fêmea no cio. O magnetismo emanado pelo odor atraía o namorado, ficante, amante... sei lá que nome dar! O charme do latido rouco era mais do que sedutor. O danado ficou louco...


Aí, fui logo comprar uma tela para o portão e prender nossa cadela dentro de casa. Daqui você não sai. Até compenso com carícias nas orelhas enormes que despencam face abaixo. De vez em quando, escapulia para o quintal sob o meu olhar atento. Bastava algum interessado aparecer...


— Pra dentro! Vamos logo e não se faça de boba! Tô de olho...


Obediente, aceitava. Ficou triste a bichinha!

Mas, filhotes para doar? Quero não!


Assim, a vida! Vinda para surpreender!


Atualizado: 18 de ago. de 2022

Gielton





Não foi amor à primeira vista. Como bom mineiro, desconfiado, coloquei um pé atrás. Melhor esperar. Oferecer meu coração assim todo de uma vez? Não! É preciso cautela. As feridas da vida exigem prudência. Afinal, pequenos esbarros podem descolar as casquinhas recém cicatrizadas.


Ela, acabrunhada, se escondia. Revelar-se de todo talvez fosse uma estratégia arriscada para quem ainda está se conhecendo. É certo, sua tenra idade dava sinais de imaturidade. Havia medo. Esse, revelado quando se entocava em algum canto da casa.


Em pouco tempo identificamos os prazeres a dois. A proximidade física é sinônimo de bem estar. Nessas frações de tempo, o simples acariciar conecta os laços. Como pequenos fios de energia, esses sinais bidirecionais vão e vêm. Assim que captados são imediatamente traduzidos em puro deleite.


Ambos apreciamos boas e longas, caminhadas. Às vezes permanecemos lado a lado enquanto os pés avançam aos passos. Outras, mantemos certa distância de respeito ao que cada um trás dentro de si. O silêncio, muitas vezes, é uma forma preciosa de comunicação.


Adoramos cachoeiras. Vamos juntos, a qualquer hora do dia. Eu, sem medo da temperatura, adentro o riacho, recebo a ducha e permaneço. Depois, "quento o Sol" escarrapachado na rocha. Ela prefere o movimento. Andar nas pedras, subir, descer. Um certo desassossego impulsiona seu estar. Mesmo assim permanecemos sintonizados.


Por algumas vezes nos distanciamos. Dias e mais dias sem encontros. Não importa o motivo, mesmo que esteja atarefado com a mente ocupada, a saudade chega de mansinho e se instala. O pensamento vai lá e pergunta: será que ela está bem?


Ah, o reencontro vem recheado de abraços calorosos. A alegria dessa hora é "incontível". Os pulos dos corações saltam alturas inatingíveis. Tudo espevitado até que a calma se reinstale. Aí, ela deita-se ao chão para receber cafuné na barriga. De patas para cima entrega-se como ninguém ao momento. O desejo desvairado a faz lamber meus pés, mãos, cotovelos. Quer morder, farejar...


Hoje, quase sete meses depois do nosso primeiro encontro, posso dizer com toda certeza: nos amamos. Maia, minha nova companheira: seu latido rouco conquistou meu coração.


Assim, a vida! Amar nunca é demais!




Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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