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Homem conectando passado e presente



Gielton


Sempre gostei da tecnologia. Apesar dos ombros curvados, me adaptei bem ao digital. Tem gente da minha idade que se perdeu no mundo do silício.


Sou do tipo que vê a tecnologia inevitável. Desde que a humanidade descobriu uma forma de produzir fogo, nada foi como antes. Diziam na época, em letras garrafais: "quem não dominar o princípio da queima estará lascado".


Meu celular quebrou a tela. Usei o Smart Conect (chique o nome, né?) e, do computador, acessei o mundo de novo. Aproveitei para traçar o encontro com quem faria o reparo.


Só que... Estaria todo o dia distante dele. Sem problemas, é claro. Afinal, não sou agarrado a ele, nem tão pouco viciado, como alguns por aí. Sei que tem gente que não suportaria tal separação. Eu não, ao contrário, sei lidar muito bem com essa dependência, quer dizer, independência. Afinal, sou foda! Não caio nas armadilhas do capitalismo.


Dito e feito! Saí da loja com um vazio no bolso. Sentimento de incompletude, como se faltasse algo subjacente ao padrão. Me estranhei... Não, deve ser o hábito. Só isso.


Ainda pela manhã, no consultório, a cardiologista pediu os exames. Coloquei a mão no bolso. Vixe... Estou sem o celular. Onde já se viu ir ao médico sem os exames impressos? Há tempos não derramo tinta no papel. Bom, alguns médicos ainda fazem exames clínicos. Minha pressão estava nas alturas.


Você conhece o "faixa azul"? Nossa, serei multado... Vou entrar com recurso dizendo que meu celular estava quebrado nesse dia. Teria esse direito?


O mais legal foi autorizar os serviços pelo celular da minha mulher. Sabia de cor o número dela. Não disse? Ainda tenho cérebro pra essas coisas. O reencontro ficou agendado para seis da tarde.


Cheguei apreensivo! Será que deu certo? A loja ainda está aberta? O celular estará funcionando direitinho?


Saí de lá com o bolso preenchido de alívio. O Waze agora pode me indicar o melhor caminho. Não que não conheça as ruas da minha cidade...


Assim, a vida! Deixa se ser besta, sô…


<imagem criada por IA>

 


Mestre Ulisses Mendes em sua mesa de trabalho



Atravessamos o interior da cozinha e alcançamos o quintal. Casa simples e humilde, sem luxos ou espaços sofisticados. Ao fundo, fomos apresentados aos fornos a lenha onde são queimadas as peças. Estávamos em Itinga, cortada ao meio pelo Jequitinhonha.


Um cientista do empirismo, com técnicas refinadas de catalogação e controle de variáveis. Do pó, extraído de duras rochas com pilões de pedra, experimenta a tintura que só será “aceita” depois de queimada junto ao barro. Seu primor pela qualidade jamais aceitaria pincelar uma peça após o forno. “Não fixam e soltam com o tempo”.


Lentamente fui entendendo que por trás daquele homem com alguns cabelos brancos, ou melhor, por dentro daquele artista, como ele próprio se designa, está guardada boa parte da

sabedoria da existência. Pronta para se expandir mundo afora. Sorte a nossa!


“Preciso fazer meus retiros”. Sim, são retiros espirituais descolados de igrejas ou crenças. Tempo de silêncio, tempo de contato com o íntimo, tempo dedicado ao respeito com a alma. Se embrenha mata adentro para encontrar consigo mesmo, com curupiras e outras entidades.


Às vezes penetra alguma ruína e, respeitosamente, sem retirar uma panela, tacho ou talher do lugar, imagina cenas cotidianas, momentos da vida simples. É mais do que inspiração, é conexão direta entre o passado convertido, no futuro breve, em barro moldado que eterniza o agora.


“Sou artista e, por consequência, defendo a preservação”. Assim, seu pensamento ecológico, ambiental e holístico se revela a cada frase, a cada expressão. Por alguns é visto como louco. São aqueles incapazes de compreender o que é estar além de normas e padrões estabelecidos.


Sr. Ulisses Mendes me impactou profundamente. Está ainda por detrás da cortina a sombra de tamanha admiração. Talvez o respeito consigo mesmo, com sua arte, vendida sim, pois precisamos sobreviver, mas não expropriada ou entregue a qualquer custo. Não falo de custo financeiro, mas de custo de existência. Quanto vale o tempo? Sem medidas, é claro. Mas, a ideia concebida e transformada em escultura vinda da terra pelo barro, transcende os minutos do relógio.


Tentaram transformá-lo em artista produtivo com horários a cumprir. Foi no Sebrae, depois de um curso de aperfeiçoamento. Entrou na vibe. Acordava, trabalhava até tal hora, almoçava, retornava… Tempos depois percebeu: “isso não é para mim”. Claro que não daria certo, não é Sr. Ulisses? Segundo ele próprio, não veio ao mundo para ser produtivo como o capitalismo impõe. Veio para expressar sua forma de vida através da arte. A arte é, sem dúvida, uma forma de resistência.


Uma pessoa espiritualizada como Mestre Ulisses Mendes não precisa de religião para se conectar aos espíritos. Compreende a religião como forma de dominação, apesar de reconhecer sua importância para as pessoas. Nos encontramos nessa ideia. Ali, sentado em seu banquinho, proferia sua palestra. Aparentemente despretensiosa, por trás de sua pequena bancada de trabalho, nos conduzia com suas palavras e gestos a uma ampliada compreensão do huma99no.


Foram duas horas de conversa, de entrega e doação, sem preocupação em receber de volta. Tamanha generosidade nos deixou “sem graça” até para sondar o valor de qualquer obra. Que pena! Seria uma forma de materializar esse encontro.


Não faz mal. A conversa larga de dimensões que contornam as fronteiras do imaginário e nossas trocas despretensiosas ficarão para sempre em nossos corações.


Obrigado Itinga.

Obrigado Vale.

Obrigado Mestre Ulisses Mendes.


Assim, a vida! Arte para transcender.

 

Gielton



Distraído ao celular no aeroporto






Em algum aeroporto aguardando voo atrasado.


- Pai, olha pra mim.


Era uma garotinha meiga, graciosa e espevitada. Dizia enquanto mexia na alça da mala.


O pai, concentrado ao celular.


Ela, animada, insistiu.


- Pai, olha a mágica que vou fazer.


Hipnotizado pelo brilho, manteve os olhos vidrados na telinha.


A pequena, com toda sua formosura, tentou novamente, em tom de voz um pouco mais imperativo.


- Pai, olha. Vou fazer uma mágica!


Desviou a atenção e impaciente disse.


- Joana, deixe essa mochila quieta, por favor.


- Pai, olha, só uma vez, a minha mágica.


Contrariado, virou o pescoço na direção da pequena que, naquele súbito instante, destravou a alavanca da maleta, subiu a alça, abriu os braços e sorriu como se internamente soasse "tam, tam, tam, tam".


O sorriso amarelou, os braços despencaram e o corpo se curvou ao perceber que o pai não estava mais ali. Os dedos teclavam algo "urgente".


Decepcionada, voltou a brincar sozinha. Silenciosa.


Assim, a vida! Urgências...

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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