top of page


Mestre Ulisses Mendes em sua mesa de trabalho



Atravessamos o interior da cozinha e alcançamos o quintal. Casa simples e humilde, sem luxos ou espaços sofisticados. Ao fundo, fomos apresentados aos fornos a lenha onde são queimadas as peças. Estávamos em Itinga, cortada ao meio pelo Jequitinhonha.


Um cientista do empirismo, com técnicas refinadas de catalogação e controle de variáveis. Do pó, extraído de duras rochas com pilões de pedra, experimenta a tintura que só será “aceita” depois de queimada junto ao barro. Seu primor pela qualidade jamais aceitaria pincelar uma peça após o forno. “Não fixam e soltam com o tempo”.


Lentamente fui entendendo que por trás daquele homem com alguns cabelos brancos, ou melhor, por dentro daquele artista, como ele próprio se designa, está guardada boa parte da

sabedoria da existência. Pronta para se expandir mundo afora. Sorte a nossa!


“Preciso fazer meus retiros”. Sim, são retiros espirituais descolados de igrejas ou crenças. Tempo de silêncio, tempo de contato com o íntimo, tempo dedicado ao respeito com a alma. Se embrenha mata adentro para encontrar consigo mesmo, com curupiras e outras entidades.


Às vezes penetra alguma ruína e, respeitosamente, sem retirar uma panela, tacho ou talher do lugar, imagina cenas cotidianas, momentos da vida simples. É mais do que inspiração, é conexão direta entre o passado convertido, no futuro breve, em barro moldado que eterniza o agora.


“Sou artista e, por consequência, defendo a preservação”. Assim, seu pensamento ecológico, ambiental e holístico se revela a cada frase, a cada expressão. Por alguns é visto como louco. São aqueles incapazes de compreender o que é estar além de normas e padrões estabelecidos.


Sr. Ulisses Mendes me impactou profundamente. Está ainda por detrás da cortina a sombra de tamanha admiração. Talvez o respeito consigo mesmo, com sua arte, vendida sim, pois precisamos sobreviver, mas não expropriada ou entregue a qualquer custo. Não falo de custo financeiro, mas de custo de existência. Quanto vale o tempo? Sem medidas, é claro. Mas, a ideia concebida e transformada em escultura vinda da terra pelo barro, transcende os minutos do relógio.


Tentaram transformá-lo em artista produtivo com horários a cumprir. Foi no Sebrae, depois de um curso de aperfeiçoamento. Entrou na vibe. Acordava, trabalhava até tal hora, almoçava, retornava… Tempos depois percebeu: “isso não é para mim”. Claro que não daria certo, não é Sr. Ulisses? Segundo ele próprio, não veio ao mundo para ser produtivo como o capitalismo impõe. Veio para expressar sua forma de vida através da arte. A arte é, sem dúvida, uma forma de resistência.


Uma pessoa espiritualizada como Mestre Ulisses Mendes não precisa de religião para se conectar aos espíritos. Compreende a religião como forma de dominação, apesar de reconhecer sua importância para as pessoas. Nos encontramos nessa ideia. Ali, sentado em seu banquinho, proferia sua palestra. Aparentemente despretensiosa, por trás de sua pequena bancada de trabalho, nos conduzia com suas palavras e gestos a uma ampliada compreensão do huma99no.


Foram duas horas de conversa, de entrega e doação, sem preocupação em receber de volta. Tamanha generosidade nos deixou “sem graça” até para sondar o valor de qualquer obra. Que pena! Seria uma forma de materializar esse encontro.


Não faz mal. A conversa larga de dimensões que contornam as fronteiras do imaginário e nossas trocas despretensiosas ficarão para sempre em nossos corações.


Obrigado Itinga.

Obrigado Vale.

Obrigado Mestre Ulisses Mendes.


Assim, a vida! Arte para transcender.

Gielton



Distraído ao celular no aeroporto






Em algum aeroporto aguardando voo atrasado.


- Pai, olha pra mim.


Era uma garotinha meiga, graciosa e espevitada. Dizia enquanto mexia na alça da mala.


O pai, concentrado ao celular.


Ela, animada, insistiu.


- Pai, olha a mágica que vou fazer.


Hipnotizado pelo brilho, manteve os olhos vidrados na telinha.


A pequena, com toda sua formosura, tentou novamente, em tom de voz um pouco mais imperativo.


- Pai, olha. Vou fazer uma mágica!


Desviou a atenção e impaciente disse.


- Joana, deixe essa mochila quieta, por favor.


- Pai, olha, só uma vez, a minha mágica.


Contrariado, virou o pescoço na direção da pequena que, naquele súbito instante, destravou a alavanca da maleta, subiu a alça, abriu os braços e sorriu como se internamente soasse "tam, tam, tam, tam".


O sorriso amarelou, os braços despencaram e o corpo se curvou ao perceber que o pai não estava mais ali. Os dedos teclavam algo "urgente".


Decepcionada, voltou a brincar sozinha. Silenciosa.


Assim, a vida! Urgências...

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Gielton



Virgem Maria -  Pintura de Giovanni Battista Salvi da Sassoferrato


O canavial ardia. As chamas subiam e cintilavam. Caules e folhas contorcidas choravam garapa ardente. De longe, um “tocho” de fumaça preta escalava o céu parecendo pneu torrado.


Dona Malvina, em desespero, clama aos trabalhadores.


— É preciso conter o fogaréu.


— Vou não, não tem como apagar.


Diz José.


Antônio responde igual.


— Sinto muito, não temos água que dê. Está muito longe.


Em rompante de desespero, Dona Malvina encheu uma lata d'água de 20 litros, aprumou-a na cabeça e, a passos lentos, começou a subir a colina.


Antônio e José, atônitos, assistiam a cena.


Inesperadamente, em um único escorregão, toda água do balde desceu como enxurrada ladeira abaixo. O tombo, digno de risadas não fosse o momento delicado, deixou Dona Malvina estatelada sobre a terra.


Sem forças, retornou.


— Vai de novo, Dona Malvina?


Ajoelhou sobre a terra seca, agarrou-se ao crucifixo, inclinou a cabeça, braços e mãos para cima. Recitou internamente. Nada se ouvia, apenas um tremular frenético de lábios. O semblante, a essa hora, traduzia convicção na divindade. Afinal, sempre fora devota da Virgem Maria. Quantas e quantas novenas, terços e Ave Marias rezou em sua breve existência. Um sussurro de clemência ecoou.


De repente, uma ventania de levantar telhas, bater janelas e portas trouxe uma nuvem cinzenta que, de tão pesada, estacionou bem em cima do canavial. Parecia uma tormenta, daquelas provocadas por efeitos especiais de cinema. Uma cena real apesar de inimaginável!


Antônio e José, pasmados, se seguravam aos pilares para não serem levados pelo sopro do ar que zunia. Enquanto isso, água em forma de gelo era lançada por São Pedro céu abaixo. A chuva torrencial abraçou aquele pedaço de terra. Nada escapou. Nem um pó de terra seca ficou.


Meia hora depois o sol de brilho intenso e claridade múltipla retorna, como se estivesse, todo esse tempo, brincando de pique esconde.


Não havia fumaça. Onde não há fumaça, não há fogo!


Antônio conta. Ninguém acredita.


Assim, a vida! Milagres da fé.


Imagem Virgem Maria - Pintura de Giovanni Battista Salvi da Sassoferrato <https://santhatela.com.br/sassoferrato/sassoferrato-a-virgem-maria-1656/>

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

  • Ícone de App de Facebook
  • YouTube clássico
  • SoundCloud clássico
bottom of page