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Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton




Cavalo em disparada pela rua



Moacir, assim lhe deram em criança, seus pais, é claro, o nome. Moacir até gostava de ser tratado assim. "Seu Moacir", era como preferiam quando, já dentro de um imóvel, questionavam algo. "Qual o valor do condomínio?", indagavam com frequência. "Será que o proprietário aceita negociar?". Ele já tinha a resposta na ponta da língua. "Faça sua proposta. Quem sabe? Tentarei uma boa negociação."


Moacir vendia, alugava, emprestava... Fazia qualquer negócio, desde que ganhasse alguma comissão. Seu lema era, não importa o valor, desde que abasteça a conta. Milho a milho o porco engorda. Certa vez, envolveu uma carroça e um cavalo na transferência de uma casinha na entrada da favela. Sobrou-lhe pouco, ele enfatiza, mas sempre cai na gargalhada toda vez que conta o caso. “Precisava ver a cara do sujeito quando o cavalo saiu desgovernado calçamento afora!”


Nessa corretagem cotidiana, de sapatos lustrados, barba rentemente aparada e camisa socialmente zincada, saía pela manhã de cliente em cliente, apartamento a apartamento, bairro a bairro. Sujeito elegantemente impecável. Mantinha a pose. A primeira impressão é a que fica, assim concebia o melhor trato com seus clientes. Conseguia, às vezes sim, outras não, retornar para o almoço em casa. Dava preferência sempre que podia. Apreciava e valorizava a vida em família. Só sei que ganhou dinheiro. Bastante dinheiro! O suficiente para lhe dar sossego na angústia do que chamam de "sucesso". Moacir era, definitivamente, um homem de êxito em sua existência.


Todo sucesso tem suas recompensas e ardências. No seu caso, a barriga levemente arcada era a cúmplice de anos de trabalho árduo. Dois, às vezes três ou quatro latões de cerveja o acompanhavam no fim de noite. Costumava dizer, para si mesmo, que merecia. Afinal, sempre fora responsável e nunca deixara faltar um sequer grão de arroz ou gota de leite em casa. Gabava-se por manter sua razão, lógica perfeita e argumentos sólidos apoiados uns sobre os outros. Para os amigos minimizava: "Tomo uma latinha antes de dormir, só para relaxar". Moacir acreditava em si mesmo. Sua embriaguez confusa turvava a visão. Não enxergava a inconsistência de suas premissas.


Os fins de semanas eram mais intrépidos. Antecipava a caminhada matinal para começar a bebedeira o quanto antes. Era outra de suas desculpas esfarrapadas. "Agora que já me exercitei — o que de fato era verdade — posso tomar minha cerveja sossegado".


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Homem cadavérico



— Sinto— me cansada. Os sonhos me atormentaram a noite toda.


— Nossa! O que houve?


Era frequente contar seus sonhos noturnos.


— Eu flutuava. De repente, perdia o controle e caía. Permanecia de pé. Havia um senhor muito magro sentado sobre a pedra e, ao fundo, a neblina cobria a vista. Tudo parecia muito real. Minhas pernas bambearam e meu pânico de altura maquiou— se em pura vertigem. Por trás da turvidez um grande desfiladeiro despencava próximo ao homem cadavérico. Bastaria um pequeno movimento para rolar cânion abaixo. Fiquei apreensiva. Permaneceu silencioso e imóvel encarando— me. Seu olhar traduzia certa desafeição, como se eu fosse alguma inimiga. "Sinto muito", foi o que ouvi antes dele se desfazer em fumaça e sumir na cerração.


— Pesado... O que acha que significa?


— Não sei.


— Seria algum sinal?


— Talvez.


De uns tempos para cá, o casal inclinara— se para os mistérios do além. Na juventude, ambos, ao seu tempo e modo, negaram religiões. Ele, de racionalidade horizontal, não via sentido em liturgias vazias de intenções por detrás. De rara sensibilidade correndo pelos vórtices, ela, bem nova, trocou as bíblias pela literatura. Sintonizaram em suas crenças no encontro de juventude, quando, ardentemente se apaixonaram. Pode ser que os descaminhos da vida o conduziria a outras reflexões. Afinal, o filho único, já crescido, estava pronto para a partida. Os cabelos levemente engrisalhados eram uma boa medida do tempo. Como se fosse necessário recomeçar. Havia ainda algo a ser feito. Algo a ser transformado.



<Imagem gerada por Inteligência Artificial>


Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton





Café da manhâ


A vida seguia sem grandes desafios. Um dia ali, outro acolá. Como se as realizações se realizassem por si. Tudo meio no automático. Interesses desafetados pelo que já foi conduziam certa monotonia. Havia uma estagnação enquanto o mundo girava.


Bem cedo, antes das seis, já estava de pé. Tinha a mania de preparar o café. Não precisava de medidas. O olho, levemente inchado, encontrava sozinho as quantidades, os volumes, as temperaturas. Tinha seu método próprio, desenvolvido ao longo dos tempos. Aliás, método é o que não lhe faltava. Era uma de suas marcas virginianas.


Normalmente ela vinha em seguida. Ouvia o tilintar dos chinelos arrastando na tábua da sala em passos curtos. O suingue das ancas sempre o atraiu. Era o jeito absorvido de infâncias vividas em outras paragens. Havia um molejo próprio diferente das mulheres de sua família. Uma soltura do corpo de quem já vivera em regiões praianas. Ela lhe fazia bem.


— Bom dia, meu bem!


— Oi. Ele devolvia.


Era costume dela aquecer água com limão — dizem que ajuda o emagrecer. Entre pães e queijos e pães de queijo com queijo — afinal, eram mineiros — as mãos transpassavam sobre a minúscula mesa da cozinha. Os amigos qualificavam como a casa dos quatro queijos. Habituaram— se ao café sem adoçantes. Talvez o doce da vida se esgotara. O amargor preto do cerne da xícara era o elegido.


— Sinto— me cansada. Os sonhos me atormentaram a noite toda.



<Imagem gerada por Inteligência Artificial>



Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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