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Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Cenouras sobre a mesa



Há mais ou menos dois anos um "vira lata” que morreu repentinamente, era quem o acompanhava em seus passeios aos sábados. O abdômen avolumado trazia uma doença desconhecida dos veterinários. Aguardavam o resultado de um exame quando, naquela noite, faltou-lhe ar. Sem saber o que fazer, Moacir pegou-o em seus braços. Agonizando, deu seu último suspiro. Moacir chorou lágrimas de tristura por dias a fio. Aquele que abanava o rabo e gritava de alegria com sua chegada, havia partido. Moacir passou dias relembrando seus rituais. Primeiro o banho. Acionava a mangueira no quintal e chamava seu amigo fiel. Vinha cabisbaixo e obediente. Ensaboava cada detalhe. Cuidava de carrapatos e pulgas entre seus pelos curtos. Ficava ainda mais branquinho depois do shampoo. Penteado como uma criança enfeitada pelos pais, iam juntos pelas ruas do bairro. Moacir se orgulhava por não usar coleiras. Educou pacientemente seu cão repetindo comandos de voz. Brincavam juntos, corriam juntos.


Na volta para casa, após duas horas de caminhada com seu amigão, deparava-se com o frigobar abastecido. Destampava a primeira lata antes do banho, tamanha ansiedade que lhe assalteava. O desejo em inebriar-se e o nexo do dever cumprido mereciam a devida recompensa: o prazer em sua máxima plenitude.


Entre um picar de alhos e cebolas com sua mulher no comando da cozinha, tragava outras mais. Faca de um lado, copo do outro. Às vezes, se engalfinhavam em discussões inócuas. Ela pedia cenouras quadradinhas. Ele, de ouvidos desligados, entregava finas e delicadas cenouras circulares. Pronto, era o necessário para quebra paus verbais.


— Que diferença faz?


Moacir argumentava.


— A cozinha está nos detalhes. Você não entende nada!


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>


 

Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton




Cavalo em disparada pela rua



Moacir, assim lhe deram em criança, seus pais, é claro, o nome. Moacir até gostava de ser tratado assim. "Seu Moacir", era como preferiam quando, já dentro de um imóvel, questionavam algo. "Qual o valor do condomínio?", indagavam com frequência. "Será que o proprietário aceita negociar?". Ele já tinha a resposta na ponta da língua. "Faça sua proposta. Quem sabe? Tentarei uma boa negociação."


Moacir vendia, alugava, emprestava... Fazia qualquer negócio, desde que ganhasse alguma comissão. Seu lema era, não importa o valor, desde que abasteça a conta. Milho a milho o porco engorda. Certa vez, envolveu uma carroça e um cavalo na transferência de uma casinha na entrada da favela. Sobrou-lhe pouco, ele enfatiza, mas sempre cai na gargalhada toda vez que conta o caso. “Precisava ver a cara do sujeito quando o cavalo saiu desgovernado calçamento afora!”


Nessa corretagem cotidiana, de sapatos lustrados, barba rentemente aparada e camisa socialmente zincada, saía pela manhã de cliente em cliente, apartamento a apartamento, bairro a bairro. Sujeito elegantemente impecável. Mantinha a pose. A primeira impressão é a que fica, assim concebia o melhor trato com seus clientes. Conseguia, às vezes sim, outras não, retornar para o almoço em casa. Dava preferência sempre que podia. Apreciava e valorizava a vida em família. Só sei que ganhou dinheiro. Bastante dinheiro! O suficiente para lhe dar sossego na angústia do que chamam de "sucesso". Moacir era, definitivamente, um homem de êxito em sua existência.


Todo sucesso tem suas recompensas e ardências. No seu caso, a barriga levemente arcada era a cúmplice de anos de trabalho árduo. Dois, às vezes três ou quatro latões de cerveja o acompanhavam no fim de noite. Costumava dizer, para si mesmo, que merecia. Afinal, sempre fora responsável e nunca deixara faltar um sequer grão de arroz ou gota de leite em casa. Gabava-se por manter sua razão, lógica perfeita e argumentos sólidos apoiados uns sobre os outros. Para os amigos minimizava: "Tomo uma latinha antes de dormir, só para relaxar". Moacir acreditava em si mesmo. Sua embriaguez confusa turvava a visão. Não enxergava a inconsistência de suas premissas.


Os fins de semanas eram mais intrépidos. Antecipava a caminhada matinal para começar a bebedeira o quanto antes. Era outra de suas desculpas esfarrapadas. "Agora que já me exercitei — o que de fato era verdade — posso tomar minha cerveja sossegado".


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

 

Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Homem cadavérico



— Sinto— me cansada. Os sonhos me atormentaram a noite toda.


— Nossa! O que houve?


Era frequente contar seus sonhos noturnos.


— Eu flutuava. De repente, perdia o controle e caía. Permanecia de pé. Havia um senhor muito magro sentado sobre a pedra e, ao fundo, a neblina cobria a vista. Tudo parecia muito real. Minhas pernas bambearam e meu pânico de altura maquiou— se em pura vertigem. Por trás da turvidez um grande desfiladeiro despencava próximo ao homem cadavérico. Bastaria um pequeno movimento para rolar cânion abaixo. Fiquei apreensiva. Permaneceu silencioso e imóvel encarando— me. Seu olhar traduzia certa desafeição, como se eu fosse alguma inimiga. "Sinto muito", foi o que ouvi antes dele se desfazer em fumaça e sumir na cerração.


— Pesado... O que acha que significa?


— Não sei.


— Seria algum sinal?


— Talvez.


De uns tempos para cá, o casal inclinara— se para os mistérios do além. Na juventude, ambos, ao seu tempo e modo, negaram religiões. Ele, de racionalidade horizontal, não via sentido em liturgias vazias de intenções por detrás. De rara sensibilidade correndo pelos vórtices, ela, bem nova, trocou as bíblias pela literatura. Sintonizaram em suas crenças no encontro de juventude, quando, ardentemente se apaixonaram. Pode ser que os descaminhos da vida o conduziria a outras reflexões. Afinal, o filho único, já crescido, estava pronto para a partida. Os cabelos levemente engrisalhados eram uma boa medida do tempo. Como se fosse necessário recomeçar. Havia ainda algo a ser feito. Algo a ser transformado.



<Imagem gerada por Inteligência Artificial>


 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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