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Gielton




Um rio que flui para os dois lados


Esses dias pra trás subia a serra. Era noite e os faróis lumiavam a dianteira dessa estradinha encurvada que nem serpente no galho. Cada pirambeira que dá medo só de olhar. Se vacilar, já era. O tanto de luzinha da cidade, lá embaixo, embaralhava as vistas de tanta beleza. Ainda mais com o céu limpinho que tava, lotado de estrelas.


Lá ia mais lento que o normal. Era a primeira viagem de Kira, a filhote da cadela mãe que resolvemos ficar. Sabe como é, tem injeção de vacina pra dar, comprimido pros vermes... Melhor é resolver esses trens na cidade grande. Tinha medo da bichinha passar mal de tanta curva e desacelerei bem.


Aí, sô, um farol de todo tamanho encosta na minha bunda e de tão perto parecia que ia entrar no veículo porta-malas adentro. Deu uma irritação, que só vendo. "Sujeito atrevido, não tá vendo que a cachorrinha tá no chão do carro morrendo de medo?" - pensei no interior do umbigo. Ele nem reagia aos meus pensamentos e tilintava de um lado para o outro querendo passar. Só que a estreiteza da pista não dava largura.


Só sei que, quando cheguei no topo, quase parei pra ele passar. Foi que nem um foguete. "Quanta pressa moço"? Deve ter seus motivos...


Me veio uns pensamentos. E se fosse ao contrário? Vixe... Tem gente mais braba no trânsito que eu, mas também não sou aquela calmaria toda. Sei que não deixaria meu para-choque chegar tão perto. Ia esperar minha vez em vez de molestar. É assim mesmo, eu sei, tem hora que a paciência tem ir na frente. Já esperei demais por trás de caminhão com criança chorando no banco de trás.


E se o sujeito da frente tá levando uma grávida cheia das contrações. Sei lá, pode ser que esteja carregando um monte de vidraria. Ou então, apenas belezeando as vistas com o brilho das luzes da capital. Ah, também pode estar carregando uma filhote de cão pela primeira vez, né?


Aprendi um bocado dessas coisas com meu pai. Quando for virar, feche bem a curva para que sua traseira não impeça a passagem do outro. Vai parar no cruzamento? Chegue perto do meio fio. O outro pode entrar e fazer a curva sem dificuldades. Está mais lento? Use a faixa da direita. Quem precisar de pressa passa sem competição. Deixa ir... cada um no seu tempo. Se o sinal fechou, reduza lentamente para não incomodar o passageiro. A luz esverdeou? Arranque rápido (não precisa cantar pneus) para tudo fluir. É bom pra você, é bom para todos...


Ah, só pra dizer, chegamos bem. Eu, Kira e sua mãe.


Assim a vida! Um toque de paciência...


  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Detalhes da face de uma leoa




Tudo começou com um pequeno sangramento. Como farelos de pão, as gotículas de sangue marcavam o trajeto. Intuía que por ali havia passado.


Dias depois o apetite voraz prenunciava algo. Estranho! De onde vinha tanta fome? São os hormônios. Só pode ser, explicava a mim mesmo por uma intuição dita ao pé do ouvido. Ela anda tão serena. Será? Pressenti corretamente?


Claro igual branco neve e límpido no pensamento, a certeza fincou sua bandeira sobre a dúvida. As tetas crescidas e a barriga aumentada eram as provas que faltavam para o observador atento aos detalhes. Está grávida! Mas como? Onde?


O ultrassom fechou o cerco. Com ele, o de dentro se "afora" em preto e branco meio embaçado. Porém, o suficiente para afirmar, são entre oito e dez filhotes. Minha cadela pulou a cerca, ou talvez fez através dela. Dizem que é possível.


Sabia que a gravidez dos cães dura apenas dois meses? Nem deu para preparar muito. Deixei-me guiar pela intuição. Ela, a cadela, disse-me tudo.


Escolheu o canto do conforto onde já passou horas e horas ao meu lado enquanto eu, ligado à tela, produzia. Apontou que a toalha com a qual forrara o chão não estava adequada. Escorregava demais. Inusitadamente puxou com os dentes, de dentro de uma sacola, um pequeno colchonete. Tinha razão, era mais firme e macio.


YouTube me ensinou: evite intervir no parto. Aja somente se necessário. Mesmo assim comprei luvas, deixei a vista a tesoura e uma fita laranja da caixa de costura para o caso de amarrar o cordão umbilical. Serei parteiro oficial pela primeira vez. Às vezes é difícil conter o medo. E se... E se... Eram tantos que a possibilidade do tempo futuro borbulha a mente no agora. Tentava me acalmar. Vai dar tudo certo.


Tadinha, ficou sem lugar no dia "d". Li em seu semblante o desconforto. Acolhi. Acarinhei. Fiquei perto. Deitou-se sobre o colchonete. Intuí sua paciência. Como sabe? Seu instinto dizia sobre espera. Calma a hora vai chegar. Eu é quem não sabia aguardar. Se passar dessa noite, levo a Maia ao veterinário.


Não derramou uma lágrima sequer, mesmo que as contrações fossem fortes, quando o primogênito apontou sua cabecinha na vulva. Escorregou como quiabo e quando assustei já estava escarrapachado sobre o colchãozinho. Era seu primeiro e sabia tudo o que fazer. Como assim? Instinto.


Lambeu, lambeu até que a fina película envolvendo todo o recém nascido se rompesse. Comeu. Puxou o cordão lentamente até vir de seu ventre a placenta. Comeu. Os caninos agiram rápido. Vindo do umbigo do filhote cortou o cordão. Lambeu todo o sangue assepticamente. Cuidou da limpeza antes do próximo. Lambeu e lambeu sua cria.


Em menos de dez minutos tudo se repete. Vontade de dizer: quanta sabedoria, quanta força, quanta entrega... Instinto! Ao fim de algumas horas a exaustão se anuncia. Deitou-se para descansar enquanto cada um dos oito filhotes mamava em uma das mamas.


Quanta honra presenciar essa pujança da natureza!


Assim, a vida! Que se anuncia.




  • Foto do escritor: Gielton
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Gielton


Criança sorrindo

O tempo transcorre. Segue seu rumo ritmado sem olhar para trás. Não quer nem saber se sou eu ou você. Está acima de nós, apesar de caminhar ao nosso lado. Pulsa no pulso...


Há quem pense que ele pode se curvar nas dimensões do espaço. Distorce, alonga, encurta. Dobra-se sobre si e "prega peça" nos desatentos. Assim, é de cada um na medida do fluir.


O menino escorregou como quiabo. Desceu das entranhas sorrindo! Era como se o mundo fosse um velho conhecido. Um bebê sabido das relações. Muito mais do que simpatia. Algo de dentro, de uma comunicação para além das palavras.


Aquela criança cativava pela silhueta da alma. Dizia tudo sem palavras. Pedia, ordenava, reclamava. A língua embaralhava sons monossílabos. Pá, era papá. Pé, pega. Dá era dá mesmo.


Os contornos do corpo diziam também. O indicador apontava, os dedos em movimento circulares nos fazia aproximar, a mão fechada proferia a raiva.


O olhar comunicava a quem quer que fosse. Desde o mais íntimo ao caixa da padaria. O rastro por onde passava exalava magia.


Ah, o tempo! Os aflitos diziam: leve esse menino ao fonoaudiólogo, já passou da hora de falar. Outros mais comedidos gentilmente questionavam:

será que o tempo dele se comunicar com palavras além de sílabas e gestos já não virou a esquina?


Nós, os pais, transbordávamos em dúvidas. Receio de passar do tempo, de vacilar na decisão, de chegarmos atrasados e o relógio se cansar da espera. Escorria incertezas como leite derramado.


Até que... veio a caxumba! Preocupados, cuidamos. A febre ardente atormentava. Abraçamos o temor. Ai, ai, ai meu Deus! De repente, uma encefalite instaurou-se e os devaneios vieram em frases inteiras com sujeito, verbo e predicado. No meio da doença conjugou perfeitamente até no pretérito do passado. Foi como se a feitiçaria do tempo com um toque de condão fizesse seu trabalho revelando o inesperado. Embasbacados, quase não críamos.


No tempo de cada um a vida se encarrega da forma e do conteúdo. Hoje, o adulto expressa sua sabedoria do humano, aprendida de tantas outras vidas, em ações de afeto explícito por palavras bem ditas de amor.


Assim, a vida! O sino do tempo badala a nota que ressoa em cada um.


Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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