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Atualizado: 21 de set. de 2023

Gielton



Adolescente triste




Desisti da Vilma. A tristeza ainda perdurou por algumas luas. Talvez, já nesse tempo, tenha se revelado um jeito de ser, de tocar a vida para frente sem muitas "frescuras". Homem que é homem... Não que não chorasse. Apenas uma forma de disfarçar a dor.


Nada como uma nova paixão para destrancar um coração doído e fechado. Tudo aconteceu nas famosas "horas dançantes", uma grande desculpa para encontros, paqueras, flertes e "ficadas" entre os adolescentes.


Elas funcionavam mais ou menos assim: alguém cedia a casa, retirava os móveis da sala e pronto! Salão de dança arranjado. Simples assim. Nada de salgadinhos ou bebidas. Na hora marcada, normalmente fim de tarde e início da noite, a turma se reunia para dançar. A vitrola arranhava os discos de sucessos internacionais do momento. As meninas, encostadas nas paredes, ficavam à espera de um convite. Os meninos, bobos como nunca, se aproximavam e diziam: quer dançar comigo? Ela poderia, ou não, aceitar, de acordo com seu interesse naquele garoto, ou para fazer ciúmes em outro, ou simplesmente para se divertir. Era um jogo...


Sempre fui tímido, acanhado, medroso, principalmente com as mulheres. O pavor de ganhar um NÃO, muitas vezes me paralisava. Invejava os "caras de pau". Convidar uma garota a dançar era um suplício. E se ela não topar? E se ela disser: “na próxima”. Mesmo depois de muitas "horas dançantes", a ansiedade batia forte no momento do convite. Pior é quando estava planejando, vou, não vou e outro ia na frente. Perdi a vez!


Em uma noite dançávamos com várias meninas diferentes, uma música de cada vez. Após cada canção, o par se separava e cada um ia para seu canto. Mas, quando o casal se enamorava, aí sim, podia bailar a noite toda, música após música, ininterruptamente, sem ser incomodado. Permaneciam juntos no salão prontos para a próxima canção que demorava um pouquinho até a agulha ser recolocada no disco. Isso era ficar. Podia ou não rolar algum beijo. Namoro era coisa séria, autorizada pelos pais.


Meu encontro com a Daniela começou nessas horas dançantes. Tinha uns doze anos. No início, apenas dançávamos como todos os outros. Rostos colados, corpos grudados. Os braços soltos sobre os ombros era sinal de intimidade. Preferíamos um ao outro. Algo a mais pulsava nos corações. Até que um dia, na volta para casa, em um clima super favorável, aconteceu. No portão da sua casa, nos demos um beijo demorado, longo, que há muito ambos desejavam. Foi o primeiro de muitos que trocamos nesses quase dois anos de "ficadas".


Ela era linda, encantadora. Havia me escolhido. Logo eu, esse cara feio, de cabelo ruim e a cara cheia de espinhas. Desajeitado, medroso, tosco, como se diria hoje. Às vezes, ficava sem entender muito bem. Não me sentia merecedor daquela garota, mas fui.


Aos poucos ganhamos intimidade e confiança. Já não era preciso permanecer todo o tempo no salão. Podíamos escapar para outros cantos. Abraçar inteiro, beijar sem restrições, sentir o desejo dos corpos. Havia, é claro, muito respeito e ternura nessas trocas de afeto. Gostávamos de conversar, partilhar ideias e ideais de vida. Muito aprendemos um com o outro.


Crescemos... A vida entortou nossos caminhos, desviou nossa atenção. Aquilo que poderia ser atalho, desilusão. Os rumos que tomamos foram em direções diferentes, quase opostas. Doeu a separação.


Por um tempo engoli a tristeza, achatei o coração, disfarcei no raciocínio que não cabia, fiz estripulias com a lógica, suguei as lágrimas dos olhos e joguei tudo para debaixo do tapete. Afinal, homem que é homem...



Assim, a vida. Que segue...


 

Gielton




Um rio que flui para os dois lados


Esses dias pra trás subia a serra. Era noite e os faróis lumiavam a dianteira dessa estradinha encurvada que nem serpente no galho. Cada pirambeira que dá medo só de olhar. Se vacilar, já era. O tanto de luzinha da cidade, lá embaixo, embaralhava as vistas de tanta beleza. Ainda mais com o céu limpinho que tava, lotado de estrelas.


Lá ia mais lento que o normal. Era a primeira viagem de Kira, a filhote da cadela mãe que resolvemos ficar. Sabe como é, tem injeção de vacina pra dar, comprimido pros vermes... Melhor é resolver esses trens na cidade grande. Tinha medo da bichinha passar mal de tanta curva e desacelerei bem.


Aí, sô, um farol de todo tamanho encosta na minha bunda e de tão perto parecia que ia entrar no veículo porta-malas adentro. Deu uma irritação, que só vendo. "Sujeito atrevido, não tá vendo que a cachorrinha tá no chão do carro morrendo de medo?" - pensei no interior do umbigo. Ele nem reagia aos meus pensamentos e tilintava de um lado para o outro querendo passar. Só que a estreiteza da pista não dava largura.


Só sei que, quando cheguei no topo, quase parei pra ele passar. Foi que nem um foguete. "Quanta pressa moço"? Deve ter seus motivos...


Me veio uns pensamentos. E se fosse ao contrário? Vixe... Tem gente mais braba no trânsito que eu, mas também não sou aquela calmaria toda. Sei que não deixaria meu para-choque chegar tão perto. Ia esperar minha vez em vez de molestar. É assim mesmo, eu sei, tem hora que a paciência tem ir na frente. Já esperei demais por trás de caminhão com criança chorando no banco de trás.


E se o sujeito da frente tá levando uma grávida cheia das contrações. Sei lá, pode ser que esteja carregando um monte de vidraria. Ou então, apenas belezeando as vistas com o brilho das luzes da capital. Ah, também pode estar carregando uma filhote de cão pela primeira vez, né?


Aprendi um bocado dessas coisas com meu pai. Quando for virar, feche bem a curva para que sua traseira não impeça a passagem do outro. Vai parar no cruzamento? Chegue perto do meio fio. O outro pode entrar e fazer a curva sem dificuldades. Está mais lento? Use a faixa da direita. Quem precisar de pressa passa sem competição. Deixa ir... cada um no seu tempo. Se o sinal fechou, reduza lentamente para não incomodar o passageiro. A luz esverdeou? Arranque rápido (não precisa cantar pneus) para tudo fluir. É bom pra você, é bom para todos...


Ah, só pra dizer, chegamos bem. Eu, Kira e sua mãe.


Assim a vida! Um toque de paciência...


 
  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Detalhes da face de uma leoa




Tudo começou com um pequeno sangramento. Como farelos de pão, as gotículas de sangue marcavam o trajeto. Intuía que por ali havia passado.


Dias depois o apetite voraz prenunciava algo. Estranho! De onde vinha tanta fome? São os hormônios. Só pode ser, explicava a mim mesmo por uma intuição dita ao pé do ouvido. Ela anda tão serena. Será? Pressenti corretamente?


Claro igual branco neve e límpido no pensamento, a certeza fincou sua bandeira sobre a dúvida. As tetas crescidas e a barriga aumentada eram as provas que faltavam para o observador atento aos detalhes. Está grávida! Mas como? Onde?


O ultrassom fechou o cerco. Com ele, o de dentro se "afora" em preto e branco meio embaçado. Porém, o suficiente para afirmar, são entre oito e dez filhotes. Minha cadela pulou a cerca, ou talvez fez através dela. Dizem que é possível.


Sabia que a gravidez dos cães dura apenas dois meses? Nem deu para preparar muito. Deixei-me guiar pela intuição. Ela, a cadela, disse-me tudo.


Escolheu o canto do conforto onde já passou horas e horas ao meu lado enquanto eu, ligado à tela, produzia. Apontou que a toalha com a qual forrara o chão não estava adequada. Escorregava demais. Inusitadamente puxou com os dentes, de dentro de uma sacola, um pequeno colchonete. Tinha razão, era mais firme e macio.


YouTube me ensinou: evite intervir no parto. Aja somente se necessário. Mesmo assim comprei luvas, deixei a vista a tesoura e uma fita laranja da caixa de costura para o caso de amarrar o cordão umbilical. Serei parteiro oficial pela primeira vez. Às vezes é difícil conter o medo. E se... E se... Eram tantos que a possibilidade do tempo futuro borbulha a mente no agora. Tentava me acalmar. Vai dar tudo certo.


Tadinha, ficou sem lugar no dia "d". Li em seu semblante o desconforto. Acolhi. Acarinhei. Fiquei perto. Deitou-se sobre o colchonete. Intuí sua paciência. Como sabe? Seu instinto dizia sobre espera. Calma a hora vai chegar. Eu é quem não sabia aguardar. Se passar dessa noite, levo a Maia ao veterinário.


Não derramou uma lágrima sequer, mesmo que as contrações fossem fortes, quando o primogênito apontou sua cabecinha na vulva. Escorregou como quiabo e quando assustei já estava escarrapachado sobre o colchãozinho. Era seu primeiro e sabia tudo o que fazer. Como assim? Instinto.


Lambeu, lambeu até que a fina película envolvendo todo o recém nascido se rompesse. Comeu. Puxou o cordão lentamente até vir de seu ventre a placenta. Comeu. Os caninos agiram rápido. Vindo do umbigo do filhote cortou o cordão. Lambeu todo o sangue assepticamente. Cuidou da limpeza antes do próximo. Lambeu e lambeu sua cria.


Em menos de dez minutos tudo se repete. Vontade de dizer: quanta sabedoria, quanta força, quanta entrega... Instinto! Ao fim de algumas horas a exaustão se anuncia. Deitou-se para descansar enquanto cada um dos oito filhotes mamava em uma das mamas.


Quanta honra presenciar essa pujança da natureza!


Assim, a vida! Que se anuncia.




 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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