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Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Homem cadavérico



— Sinto— me cansada. Os sonhos me atormentaram a noite toda.


— Nossa! O que houve?


Era frequente contar seus sonhos noturnos.


— Eu flutuava. De repente, perdia o controle e caía. Permanecia de pé. Havia um senhor muito magro sentado sobre a pedra e, ao fundo, a neblina cobria a vista. Tudo parecia muito real. Minhas pernas bambearam e meu pânico de altura maquiou— se em pura vertigem. Por trás da turvidez um grande desfiladeiro despencava próximo ao homem cadavérico. Bastaria um pequeno movimento para rolar cânion abaixo. Fiquei apreensiva. Permaneceu silencioso e imóvel encarando— me. Seu olhar traduzia certa desafeição, como se eu fosse alguma inimiga. "Sinto muito", foi o que ouvi antes dele se desfazer em fumaça e sumir na cerração.


— Pesado... O que acha que significa?


— Não sei.


— Seria algum sinal?


— Talvez.


De uns tempos para cá, o casal inclinara— se para os mistérios do além. Na juventude, ambos, ao seu tempo e modo, negaram religiões. Ele, de racionalidade horizontal, não via sentido em liturgias vazias de intenções por detrás. De rara sensibilidade correndo pelos vórtices, ela, bem nova, trocou as bíblias pela literatura. Sintonizaram em suas crenças no encontro de juventude, quando, ardentemente se apaixonaram. Pode ser que os descaminhos da vida o conduziria a outras reflexões. Afinal, o filho único, já crescido, estava pronto para a partida. Os cabelos levemente engrisalhados eram uma boa medida do tempo. Como se fosse necessário recomeçar. Havia ainda algo a ser feito. Algo a ser transformado.



<Imagem gerada por Inteligência Artificial>


Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton





Café da manhâ


A vida seguia sem grandes desafios. Um dia ali, outro acolá. Como se as realizações se realizassem por si. Tudo meio no automático. Interesses desafetados pelo que já foi conduziam certa monotonia. Havia uma estagnação enquanto o mundo girava.


Bem cedo, antes das seis, já estava de pé. Tinha a mania de preparar o café. Não precisava de medidas. O olho, levemente inchado, encontrava sozinho as quantidades, os volumes, as temperaturas. Tinha seu método próprio, desenvolvido ao longo dos tempos. Aliás, método é o que não lhe faltava. Era uma de suas marcas virginianas.


Normalmente ela vinha em seguida. Ouvia o tilintar dos chinelos arrastando na tábua da sala em passos curtos. O suingue das ancas sempre o atraiu. Era o jeito absorvido de infâncias vividas em outras paragens. Havia um molejo próprio diferente das mulheres de sua família. Uma soltura do corpo de quem já vivera em regiões praianas. Ela lhe fazia bem.


— Bom dia, meu bem!


— Oi. Ele devolvia.


Era costume dela aquecer água com limão — dizem que ajuda o emagrecer. Entre pães e queijos e pães de queijo com queijo — afinal, eram mineiros — as mãos transpassavam sobre a minúscula mesa da cozinha. Os amigos qualificavam como a casa dos quatro queijos. Habituaram— se ao café sem adoçantes. Talvez o doce da vida se esgotara. O amargor preto do cerne da xícara era o elegido.


— Sinto— me cansada. Os sonhos me atormentaram a noite toda.



<Imagem gerada por Inteligência Artificial>



Atualizado: 21 de set. de 2023

Gielton



Adolescente triste




Desisti da Vilma. A tristeza ainda perdurou por algumas luas. Talvez, já nesse tempo, tenha se revelado um jeito de ser, de tocar a vida para frente sem muitas "frescuras". Homem que é homem... Não que não chorasse. Apenas uma forma de disfarçar a dor.


Nada como uma nova paixão para destrancar um coração doído e fechado. Tudo aconteceu nas famosas "horas dançantes", uma grande desculpa para encontros, paqueras, flertes e "ficadas" entre os adolescentes.


Elas funcionavam mais ou menos assim: alguém cedia a casa, retirava os móveis da sala e pronto! Salão de dança arranjado. Simples assim. Nada de salgadinhos ou bebidas. Na hora marcada, normalmente fim de tarde e início da noite, a turma se reunia para dançar. A vitrola arranhava os discos de sucessos internacionais do momento. As meninas, encostadas nas paredes, ficavam à espera de um convite. Os meninos, bobos como nunca, se aproximavam e diziam: quer dançar comigo? Ela poderia, ou não, aceitar, de acordo com seu interesse naquele garoto, ou para fazer ciúmes em outro, ou simplesmente para se divertir. Era um jogo...


Sempre fui tímido, acanhado, medroso, principalmente com as mulheres. O pavor de ganhar um NÃO, muitas vezes me paralisava. Invejava os "caras de pau". Convidar uma garota a dançar era um suplício. E se ela não topar? E se ela disser: “na próxima”. Mesmo depois de muitas "horas dançantes", a ansiedade batia forte no momento do convite. Pior é quando estava planejando, vou, não vou e outro ia na frente. Perdi a vez!


Em uma noite dançávamos com várias meninas diferentes, uma música de cada vez. Após cada canção, o par se separava e cada um ia para seu canto. Mas, quando o casal se enamorava, aí sim, podia bailar a noite toda, música após música, ininterruptamente, sem ser incomodado. Permaneciam juntos no salão prontos para a próxima canção que demorava um pouquinho até a agulha ser recolocada no disco. Isso era ficar. Podia ou não rolar algum beijo. Namoro era coisa séria, autorizada pelos pais.


Meu encontro com a Daniela começou nessas horas dançantes. Tinha uns doze anos. No início, apenas dançávamos como todos os outros. Rostos colados, corpos grudados. Os braços soltos sobre os ombros era sinal de intimidade. Preferíamos um ao outro. Algo a mais pulsava nos corações. Até que um dia, na volta para casa, em um clima super favorável, aconteceu. No portão da sua casa, nos demos um beijo demorado, longo, que há muito ambos desejavam. Foi o primeiro de muitos que trocamos nesses quase dois anos de "ficadas".


Ela era linda, encantadora. Havia me escolhido. Logo eu, esse cara feio, de cabelo ruim e a cara cheia de espinhas. Desajeitado, medroso, tosco, como se diria hoje. Às vezes, ficava sem entender muito bem. Não me sentia merecedor daquela garota, mas fui.


Aos poucos ganhamos intimidade e confiança. Já não era preciso permanecer todo o tempo no salão. Podíamos escapar para outros cantos. Abraçar inteiro, beijar sem restrições, sentir o desejo dos corpos. Havia, é claro, muito respeito e ternura nessas trocas de afeto. Gostávamos de conversar, partilhar ideias e ideais de vida. Muito aprendemos um com o outro.


Crescemos... A vida entortou nossos caminhos, desviou nossa atenção. Aquilo que poderia ser atalho, desilusão. Os rumos que tomamos foram em direções diferentes, quase opostas. Doeu a separação.


Por um tempo engoli a tristeza, achatei o coração, disfarcei no raciocínio que não cabia, fiz estripulias com a lógica, suguei as lágrimas dos olhos e joguei tudo para debaixo do tapete. Afinal, homem que é homem...



Assim, a vida. Que segue...


Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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