A CANECA
- Gielton
- 19 de mai. de 2020
- 3 min de leitura
Gielton
Minha filha, ao volante, entra na garagem. Confunde-se com os vários controles remotos emaranhados na mão. Eu, na cadeira do passageiro, penso. "Deveria manter o controle consigo para fechar o portão mais rapidamente". Porque ainda julgo atitudes dos outros?
Era noite e voltávamos da Telha Norte, uma enorme loja de produtos para casas em construção ou reformas. É o meu caso. As cerâmicas do banheiro estufaram. Aí, já viu. Obra interminável!
Ela diz amedrontada mirando o retrovisor:
- Há uma movimentação estranha no portão. Parece uma sombra indo e vindo.
Desci rápido do carro. A essa altura, o aparelho desembolado, já ativara o fechamento do portão. Chovia lá fora. Nossa! O céu tem é desabado água nesses tempos. Da grade do portão a vi. Era a senhora, moradora de rua que, de vez em quando, passa a noite sob nossa marquise. Puxei assunto.
- Boa noite, como vai a senhora. Anda sumida.
Com seu jeito acanhado e a voz enforcada para dentro da garganta, veio com a lorota de sempre para pedir alguma coisa. Qualquer coisa!
- Ah, hoje estou querendo tomar um banho quentinho no centro. Tem lá, dez reais.
Saquei minha carteira do bolso. Havia uma nota de cem, duas de vinte e uma de dois reais. Dei-lhe vinte reais. Como se um rompante de humanidade me acometesse. Fugi do meu padrão, sem motivo aparente.
- É para seu banho, hein? - Ordenei
Imensurável o tamanho de seu sorriso. A boca escancarada e a gengiva aparente, seguida de "Deus lhe pague", foi sua forma de agradecer. Virou-se e seguiu adiante, como se não houvesse tempo a perder no tocar a vida.
No dia seguinte, José, o neto, depois de ganhar beijinhos dos avós na cama, me acompanha até a padaria. Avistei-a assim que o "tec" da trava elétrica soou.
- Bom dia. Como vai a senhora? Foi ao banho ontem?
Ela desceu a rua aproximando-se de nós. Titubeando disse.
- Fuuuui... Não, eu não vou mentir. Ontem, sabe aquelas pizzarias do lado de lá da Amazonas? Comprei uma pizza e comi inteirinha... Uma delícia. Deus o abençoe.
José, impaciente danou a subir a rua. Fui atrás. Na volta, com os pães debaixo do braço, a interpelei novamente.
- Então, a pizza estava boa? Como a senhora se chama?
- Lu...
- Como?
- Meu nome no documento é Luci, mas me chamam de Raquel
- Luciana?
- Isso.
- Mas, porque te chamam de Raquel?
- É que um dia eu disse que queria um nome de princesa. Raquel.
- Bonito nome. E porque a senhora está na rua?
Seu semblante entristeceu. Cabisbaixa, tentou esconder as lágrimas que gotejavam na ponta do nariz. Sem conseguir disfarçar, embargada, completou.
- Não gosto de falar disso. A tristeza aumenta muito... A dor vem com força...
Enquanto conversávamos, pensava. Isso pode dar uma boa crônica. Maldito pensamento. Apropriando-se da dor do outro para benefício próprio? Como pode ser tão perverso?
- Onde nasceu?
- Monlevade. Um dia ainda volto para casa. Vou só resolver alguns problemas primeiro.
Humm, sei. Fui entrando. Antes que fechasse o portão ela veio atrás pedindo algo. Eu não entendia sua conversa atarantada, como se uma trava na língua não lhe desse mobilidade suficiente. Na dúvida disse:
- Hoje não tenho dinheiro. Paguei a padaria com cartão.
Mentira! As mesmas notas estavam na mesma carteira. Nem pensar em dar vinte reais de novo.
- Não quero dinheiro. Queria um café com leite quente.
Ducha de água fria em minha maldade.
- Espere, vou ver se consigo.
Lá de cima gritei. Luci! Você está aí? Ouvi sua voz rouca e trêmula. Desci com uma caneca de café com leite.
- Aqui está.
Apanhou com as duas mãos.
- Deixo a caneca aqui depois.
- Não, pode levar. A senhora fuma craque? - perguntei quase sem querer.
Porque ainda desconfio das pessoas?
- Deus me livre!
Subiu a rua assustada.
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