A CRUZETA
- Gielton
- 15 de jul. de 2019
- 3 min de leitura
Gielton

Meu pai nasceu em Conceição do Mato Dentro, interior das Minas Gerais, em 1921. Era branco, da pele muito clara, quase albino e de olhos azuis. Porém, se gabava do cabelo crespo, grosso, duro e anelado, herdado de um bisavô negro. Mantinha-o sempre muito curto, bem rente ao coro cabeludo, penteado para trás. Na época era comum os homens portarem uma escova de bolso. Uma alça para encaixar o dedo do meio, mantinha-a firme na mão. Era usual ver alguém sacando sua escova, assim, no meio de uma conversa, e dando um trato na juba.
Era um homem de visão além do seu tempo, ao contrário do nosso vizinho de frente, pessoa dura, rigorosa e inflexível. Com os filhos então, nem se diga. Certa vez, da janela de fundo, observei seu filho descendo o morro do Grajaú numa correria desenfreada. Seu pai o esperava de cinta na mão. Não sei o motivo, mas me lembro da tristeza que senti por ele pois, nesse dia, levou uma surra daquelas, apresentada em forma de show para toda a vizinhança. Doeu forte em meu coração o sofrimento daquele garoto ao som de choros e gritos retumbando com cinto que franzia como um chicote.
Em uma manhã ensolarada meu pai lavava sua Vemaguet azul escura, quando o tal vizinho lhe aborda.
– Ô Zé Rosa, você lavando carro com dois homões dentro de casa?
– Calma, cada coisa no seu tempo. Em breve o farão por si só e com o maior prazer.
Dito e feito. Na adolescência estabeleci um ritual bem demorado. Primeiro lavava a Vemaguet com água e sabão. Depois passava cera em todas as partes. Esperava secar e, em seguida, lustrava, no muque, com uma estopa. Trabalho pesado que fazia com gosto. A recompensa? Uma voltinha no quarteirão pilotando a Vemaguet.
Eu sempre gostei de carros. Acompanhava meu pai na troca de óleo no Seu Jair. Nessas ocasiões o enchia de perguntas sobre o funcionamento do motor, da embreagem, das marchas. Ele explicava com o maior orgulho. Na verdade, não entendia tudo mas, antes de aprender a dirigir, já sabia um bocado sobre automóveis.
Brincava de simular a direção enquanto meu pai pilotava. O ar era o volante. Punha as duas mãos à frente do peito com os braços esticados e girava para um lado ou para outro acompanhando as curvas do trajeto. Idealizava o câmbio com a mão direita e os pedais tentando realizar essas manobras ao mesmo tempo em que meu pai conduzia. Adorava essa brincadeira!
Era um domingo. Eu tinha uns doze anos de idade. A Vemaguet estava estacionada. Meu pai me chama e pede para tirá-la da garagem. Era craque em dar a partida mas, dirigir de verdade mesmo, nunca. Relutei dizendo:
– Acha mesmo pai? Será que consigo?
O portão da garagem era grande e largo. Mesmo assim, era preciso boa noção espacial para não esbarrar. Eu, que mal alcançava os pedais, pouco conseguia ver do entorno. Sabia tudo o que fazer em teoria, mas pegar aquele carrão de verdade era outra coisa.
Ele insistiu.
– Vai que você consegue.
Entrei, liguei a Vemaguet, debreei e, movimentando a alavanca presa ao volante, engatei a primeira marcha. Fui acelerando lentamente enquanto soltava a embreagem. O carro andou devagarzinho. Virei o volante e saí da garagem, lateralmente ao muro da casa.
Consegui! Desci do carro feliz e satisfeito pelo feito inédito. Afinal, era a minha primeira experiência no volante. Só que o carro ficou atravessado na rua. Seria necessário mais uma manobra. Meu pai disse.
– Entre novamente, coloque a ré e acerte.
Previ a dificuldade e disse:
– Não sei se consigo!!!
Ele insistiu.
Entrei de novo no carro e engatei a ré puxando a alavanca para dentro e depois para cima. Quantas e quantas vezes fiz isso na imaginação. Mas agora era de verdade e o declive da rua tornava a operação ainda mais complexa. Imagine alguém que nunca havia dirigido dar uma ré na subida! Na primeira tentativa o carro morreu. Meu pai instruiu.
– Assim que tirar o pé do freio, acelere rápido e solte a embreagem devagar.
Fácil falar, mas vai fazer. De novo o carro morreu. Enquanto a vizinhança rodeava a Vemaguet tentei convencer meu pai de ele mesmo manobrar. Ele insistiu. O carro morreu de novo, mais umas três vezes. Na quarta ou quinta tentativa, acelerei mais e quando soltei a embreagem senti um tranco mais forte . TEC!!! Desci do carro todo envergonhado sob o olhar dos muitos à minha volta. O estrago era grande e sem conserto para um dia de domingo. Tim, um dos vizinhos, entendedor de carros e caminhões, anunciou.
– Ele quebrou a cruzeta!!!
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