A SACADA
- Gielton
- 10 de mar. de 2020
- 2 min de leitura
Atualizado: 11 de mar. de 2020
Gielton
Eram quase dez da manhã. Da varanda do apartamento no centro da cidade a rua se mostrava aos seus olhos atentos. Bel Airs, Aero-Willys, Vemaguets, kombis e fuscas se entrelaçavam na principal avenida da cidade, a Afonso Pena. Engraçado, como as coisas mudam! Ele tinha pouco mais de dois anos e livremente debruçava-se sobre o beiral da varanda. Nada de telas de proteção, armadilhas de aprisionamento. Quanta confiança havia naquele tempo.
A mãe atarefada circulava dentro de casa. Trabalho duro. Dos quartos para a sala vinha como um furacão recolhendo chinelos, pijamas, travesseiros... Tudo em ordem num quase piscar de olhos. Quanta habilidade, quanta eficiência!
Enquanto o corpo movimentava, a mente agia. O cardápio do dia era pensado em meio a essa assoberbada manhã. Como as linhas da palma da mão conhecia as prateleiras da geladeira. Tinha preferência pelo bife passado em duas frigideiras. Especialidade da casa que vivia cheia de parentes vindos do interior. Moravam para estudar. Seriam futuros doutores.
Em um átimo, ao adentrar a sala, a mãe vê o bico do bebê em queda da sacada do terceiro andar. Como em câmara lenta, ele rodopiava no ar, deixando ora a argola virada para baixo, ora para cima, enquanto descia movido pela gravidade. Quase no mesmo tempo a mãe pensou e agiu. Desceu as escadarias numa correria danada. Chegou na calçada de pedras portuguesas com desenhos geométricos quase junto da chupeta.
Recuperada, pensou. Na mesma rapidez de raciocínio entrou na drogaria duas lojas à frente e comprou outra chupeta. Dessa vez, na cor azul. É só para garantir, avaliou internamente.
Botou as duas para ferver. Enquanto ouvia o borbulhar da água na panela labutava um pouco mais. Tempo perdido, trabalho dobrado. Cinco xícaras de arroz no escorredor, água no feijão para cozer, couve dentro da pia... Tudo ao mesmo tempo, sobreposto em simultaneidade.
O chiar da panela de pressão preenchia o apartamento. Foi até a sacada e ofereceu o bico verde ao filho. Recusou. Tentou novamente. Nova recusa.
Durante a refeição relatou a manhã para o marido. O pai, então, depois do café, abaixou-se no mesmo nível do filho único do casal e lhe entregou o bico azul. Ele olhou para a chupeta, tomou-a em sua mão direita e destrambelhadamente a jogou no chão.
Assim, a vida. Essa criança sacou que não precisaria mais de bico para se acalmar?
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