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AMIGAS

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton
  • 28 de mai. de 2020
  • 2 min de leitura

GIELTON



A estrada levava para Formiga. Sua mulher ao volante o deixava relaxado. Da janela do passageiro abria-se um portal para outras dimensões. Os verdes morros ondulados se sobrepunham como se, logo ali, além do horizonte, morasse o paraíso. Estavam vivos e reluzentes. Estonteavam a visão. Afinal, nos meses que antecederam, muita água tinha caído do céu.


No banco de trás, as amigas. Velhas colegas de trabalho. Orgulham-se por completarem vinte e tantos anos de encontros frequentes dos remotos tempos da LabCosp. Em Formiga a mais impulsiva do grupo preparava a festa.


Carmem estava linda. Adotava um corte curto, bem curto para o cabelo. Os encaracolados fios grisalhos realçam os brincos vermelhos brilhantes. O abadá branco com estampas azul claro, o colar de barbante de búzios em forma de pétalas, o pequeno piercing no nariz e o sorriso farto, condiziam com sua identidade e engajamento. "Sou mulher negra, com muito orgulho."


Ele, silencioso e conectado, apenas ouvia. Lembraram juntas das brincadeiras na firma. Carmem, na época estagiária, fora adotada pela motorista do dia, secretária da diretoria. Ensinou sobre formulários, etiquetas e orçamentos. Doou sua atenção. Deu ouvidos a histórias de amores e amarguras.


Carmem recordou seu casamento com Jonas. Dos diretores, o mais intelectual. Mantinha sua negritude atrás dos óculos. Exibia sua erudição em discursos filosóficos dentro da empresa. Sujeito sagaz, articulado e proprietário de si.


No início tudo são flores. A paixão, quando não se transmuta em amor, dissipa-se como fumaça de cigarro. Em pouco tempo, Carmem se via sozinha no pequeno apartamento que compartilhavam. Enquanto isso, Jonas tinha como companheiro o boteco. O copo de cerveja era seu amuleto. A sensação de embriaguez ampliava sua miopia. Entrevia apenas vultos como por detrás de uma superfície embaçada.


O casal se perdeu. Talvez existam ainda arrependimentos e esperanças frustadas. Carmem, no entanto, não desistira do amor. Seguiu seu rumo com o filho que trouxeram ao mundo. De empregada doméstica à doutora. Pós doutora, PHD em Química aplicada. Reconhecida pelos pares, estivera na Suíça por mais de uma vez em pesquisas colaborativas. Estuda a reutilização de substâncias captadas por filtros industriais.


Da última vez, instalou-se em Berna, onde conheceu Leon, professor universitário. Paixão mútua ao primeiro contato. Ardência sexual. Desejos e projetos comuns. Sintonia fina nas vibrações mútuas. Encontro marcado pelos orixás.


"Vamos morar na Bahia", ela dizia. "Eu posso dar aulas de francês e alemão. Escolhemos uma casinha à beira da praia". Tudo ia bem. Afetos em dia. Jantares e vinhos. Parques aromatizados por rosas de bem querer. Antigos amores administrados. Filhos em caminhos cruzados.


Havia, no entanto, um pequeno problema. Uma vesícula a ser extraída. A cirurgia com anestesia geral levou junto o humor de Leon. Deu "calundu", como Carmem mesma disse já na entrada de Formiga. Leon, irreconhecível, foi-se. Uma estranha sensação de ausência arrebatou-lhes. Algo intangível teria arriado dos céus? O paraíso, logo alí, atrás dos morros, parecia tão perto!


Mesmo com a feição ainda sombria, Carmem, cravejada em seu propósito confessa: "persisto confiando no amor".


Assim, a vida. Não há medida para o tempo do amar.


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Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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