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A CHAPA

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton
  • 24 de set. de 2019
  • 3 min de leitura

Gielton


Viajamos para estar no meio do povo, sentir a energia das pessoas, provar o cotidiano da cidade, os sabores da culinária, os odores atmosféricos. Esse contato mais de perto, fora do circuito turístico, nos faz viajantes especiais. Pelo menos, assim nos sentimos.

Pois bem, Carlos, nosso super guia local, nos enfiou na "chapa", uma Van para transporte das pessoas simples e pobres de Maputo. Estava estacionada, mais ou menos no meio da rua, próxima à grande praça. Era branca e bem detonada. Traços de ferrugem pincelavam sua lataria. Manchas pela carroceria eram como as feridas da vida.

O entorno, cheio de vendedores ambulantes, trazia cor e vida ao centro da cidade. Dali avistávamos o grande mercado e a loja do Elefante, especializada em capulanas. As moçambicanas adoram e deixam o cheiro das cores por onde passam. Seja simplesmente amarrada na cintura ou como um turbante tecendo o penteado. São lindas, as capulanas... e as moçambicanas!

Entramos e nos assentamos. Haviam apenas três pessoas na frente. Escolhemos a fileira do meio. Carlos sentou-se logo atrás. O trocador em pé, à porta, gritava em português o itinerário, enquanto os passageiros entravam. Ele dizia, "vamos encher, vamos encher!" E foi, enchendo, empanturrando... Quatro pessoas em cada fileira se espremiam, encostando ombros com ombros, pele com pele.

A proximidade facilita a percepção do outro e as trocas de energias. Apesar dos semblantes cansados ou preocupados, a alegria paira. O sorriso está no ar. Só agora, vendo de pertinho a nuca dos passageiros, notei que quase todos os homens usam cabelos muito curtos, tipo máquina dois e pé bem aparado. As mulheres, por sua vez, exibem suas cabeleiras com penteados diversos. A maioria valorizando a sua negritude.

Lotação esgotada. Partimos. Entreolhamo-nos. Conhecemos nossos olhares. Sabemos o que dizem. Estava escrito por dentro da pupila aquilo que só nosso pensamento podia ler, mas que o coração denunciava. Assim fomos. Quase não percebi o caminho. Minha atenção voltava-se para dentro. Fiquei imaginando o cotidiano daquelas pessoas, observando os movimentos, os olhares, os dizeres, o silêncio.

De repente, uma parada. Ninguém desce. Mais duas pessoas entram. Uma jovem com seu bebê preso à capulana amarrada entre os ombros e a cintura. Não é possível que ela vai entrar. Entrou. Não tem lugar. Tinha. Ajeitaram mãe e filho em um banco na frente virado ao contrário do nosso. Mais apertado que tudo. Pouco à frente outro apeadeiro. Entrou um homem com roupa social, paletó cinza e calça comprida. Era mais gordinho. Esse não vai caber. Recolheu a bunda para que a porta se fechasse e permaneceu em pé, no canto, com os dois braços abertos sobre as cabeças das pessoas. A posição era esdrúxula. Ninguém reclama! Seria uma forma de se solidarizar com a precisão do outro?

Mais algumas curvas e chegou! Já? Tão rápido! Carlos indicou que era hora de descer. Saí espremendo, raspando entre as pessoas, contorcendo o corpo sobre a cadeira até alcançar a calçada. Olhei para trás. Minha mulher ainda se desvencilhando dos obstáculos, também aterrissa no passeio. Carlos pagou nossa passagem. O valor? Nem imaginam. 10 meticais (60 centavos de reais).

A viagem durou uns vinte minutos, mas o experimentar da "chapa" em Maputo ficará para a eternidade. Poucos têm essa honra, nos disseram alguns amigos, moradores de Maputo, que nunca entraram em uma "chapa".

Assim, a vida. De repente, o inusitado aparece. Hora de agarra-lo com força e sentir.

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Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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