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COMO CLARICE

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton
  • 24 de fev. de 2021
  • 2 min de leitura

Gielton



Meu olho direito tem se avermelhado, porém sem dores. Eu e minhas teorias: o excesso de tempo no computador, devido as aulas online é, certamente, a origem. Melhor agendar um oftalmologista.


Fomos, eu e minha mulher. Juntos, cada um com suas miopias e olhares distorcidos. Já vem aquele colírio. Olhos fechados por breve tempo. Abri. Enxergo normal. Nenhum desconforto. Sou foda mesmo! Todo mundo reclama dessas gotinhas. Manha pura!


Entro no amplo consultório repleto de equipamentos. Sou conduzido a cada um. Enxergo levemente menos. Da última lente são poucos graus a acrescentar, segundo a médica. Contudo, o exame minucioso e demorado, detectou um quisto.


— Tumor, doutora?


O tom reto de sua voz surpreendeu-me.


— Sim. Será preciso extraí-lo e fazer biópsia.


— É grave?


— Está superficial. Mas é importante averiguar. Vou te encaminhar.


— É câncer?


— Pode ser benigno. Só a biópsia dirá.


Tentei acalmar meu pânico, mas o susto instalara-se. Um terrível temor de um possível tumor acometeu-me. Melhor fingir!


Contei a minha mulher ainda na sala de espera. Arregalou os olhos, não as pupilas - não gotejaram o tal colírio nela.


— E aí? É grave?


— Não, não é nada não! A biópsia é só para confirmar que não é nada.


Disfarcei o medo. Desviei o assunto. Torci levemente o pescoço para o lado e assobiei mentalmente.


Era fim de tarde e o Sol, próximo a linha do horizonte, refletia na calçada. A vista não tolerou. Estreitei os olhos imediatamente. Só aí raciocinei. É para dilatar a pupila, seu arrogante! Na sala de exames do edifício tudo parece normal, mas a fotofobia torna-se insuportável na claridade. Bem próximo ao carro, pensei: posso voltar dirigindo, sou foda mesmo! Melhor não. Depois acontece alguma coisa e eu me ferro!


— Você pode dirigir? A sensibilidade à luz nem me causa tanto incômodo, mas julgo ser mais prudente.


Na primeira esquina intrometi.


— Não, é por ali!


— Pensei em ir pela Guajajaras.


— Claro! Faça seu caminho.


Que mania de controle! O brilho estava intenso e ofuscava até os pensamentos. Cerrei os olhos. Um oásis na escuridão. Adentrei em mim e brinquei de cego. Sei que isso não é brincadeira, mas fiz assim mesmo. Redobrei minha atenção ao movimento, às curvas, às paradas. Seguia a rota do carro como em um mapa mental, enquanto aromas me agraciavam. Mantinha integral atenção à conversa com minha companheira, ao mesmo tempo em que debulhava, vindo do rádio "Canção da América". Respondia prontamente e ainda pensava na última crônica e nos textos de Clarice (tão íntima minha...).


Comentei.


— Ela disse que pensa escrevendo, como você. Eu não, construo toda a narrativa na minha cabeça. Início, meio e fim.


Estava tão gostoso de olhos fechados. Não via, mas ouvia. Escuro por dentro e lúcido em pensamento. O arbítrio da situação encontrava sua falta. Isso era bom. Também, que mania de olhar tudo, de prever o próximo passo, de saber o que se passa nos arrabaldes... Tão bom saber nada disso. Deixar-se levar. Confiar!


De volta para casa. São e salvo!


Escrevi como Clarisse, sem saber muito bem para onde iria, nem onde chegar. Quem me dera! Arrogante, imitão. Imitação boa, eu acho.


Assim, a vida.


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Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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