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CRIATURAS ESPECIAIS

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton
  • 13 de mai. de 2019
  • 3 min de leitura

Gielton




Netos são criaturas especiais. Além de anjos recém chegados do céu, são crianças de grande sabedoria.

Estava morrendo de saudades do José. Não nos víamos há mais de duas semanas. Da última vez a despedida foi chorosa, sentida por nós dois. Tivemos que partir e deixá-los. A vida clama por compromissos inadiáveis.

Voltamos ontem, quinta-feira da paixão. Já anoitecia. O trânsito chato de Lagoa Santa me deixou ainda mais ansioso por vê-lo. Ainda dentro do carro disse para a turma que viajava comigo:

- Gente, se o José já estiver dormindo, juro que vou acordá-lo. Estou tomado pelas saudades.

Que nada, passou o dia ansioso com a chegada dos avós, disse a nora querida. Ela, sim, tem autoridade. Faz as leituras mais precisas do filho.

Quando entrei na casa com um monte de bagagem dependurada pelo corpo ele já estava no colo da avó. Assim que me viu, abriu um sorriso tão, mas tão genuíno que me derreti todo. Me liquefiz quando estendeu os braços fazendo um movimento em minha direção. Larguei as tralhas do jeito que deu e o apanhei. Sussurrei no seu ouvido:

- Vovô tava morrendo de saudades desse menino.

Grudamos. Agarramos um no outro. Parecia o reencontro de dois velhos amigos com muitas histórias para contar, mesmo que apenas através de balbucios.

Restavam ainda algumas sacolas no carro. Fomos buscar. A intimidade era tamanha que pegou meu indicador esquerdo e começou a morder. Disse:

- Ai José, tá doendo.

Ele continuou, devagar. Até que apertou com força. Doeu de verdade a mordida de mais de seis dentes. Ainda não tem a medida do seu vigor. Reativamente gritei, sem grandes escândalos:

- Ai, ai, ai...

Sua feição mudou e um choro sentido saiu de suas entranhas. Os profundos soluços e lágrimas nos olhos podiam ser traduzidos como:

- Vovô, não briga comigo.

Imediatamente lhe pedi desculpas e tentei suavizar sua tristeza. Andamos um pouco pela rua para ver a Lua cheia alta no céu. Sessou o choro. Será que me perdoou?

No reencontro com a mãe caiu em prantos novamente. Recebeu, então, o outro colo, daquela que ainda o amamenta.

Pensei, eita avô bobo. Se achando o mais querido, toma!! Crianças são inusitadas. Esse garoto é sensível ao tom de voz mais forte. É tocado por qualquer expressão mínima de agressividade. Seria uma forma de manter a pureza e se proteger das pancadas da vida?

Hora do banho. Entrei no chuveiro e pouco depois a vovó o trouxe. Abriu aquele mesmo sorriso e se inclinou. Deitou a cabecinha no meu ombro e ficou ali, sentido a água quentinha do chuveiro sobre as costas. Nessa hora tive a certeza que me havia perdoado. Quanta sabedoria. Quanta boa energia. Que delícia sentir sua calma na fluidez da água.

Saiu chorando, como quem diz:

- Deixa-me ficar aqui, um pouco mais, com meu avô!!!

Da sala da TV ouvia suas gargalhadas de alegria enquanto o tio e sua namorada brincavam com ele no quarto vizinho. Criança feliz. Vive cada momento de uma vez, um a um no seu turno.

Pensei, vão agitar o menino e atrapalhar sua hora de dormir. Que nada. Pouco depois saímos para a rua silenciosa do bairro. Já havia coçado os ouvidos e bocejado o suficiente. É assim que expressa seu cansaço. Era hora de dormir. Teria a calma suficiente para se entregar?

Comecei a cantar: "Uma bonequinha preta..." A mesma canção a qual já adormeceu várias outras vezes comigo. Dessa vez foi diferente. Surpreendentemente deitou novamente sua cabeça sobre meus ombros, como quem diz:

- Vovô, estou cansado. Conheço sua energia e confio. Sei que é hora de dormir.

Em pouco tempo adormeceu. Senti seu peso relaxando aos poucos sobre o meu corpo enquanto caminhava à luz brilhante da Lua. Vontade de ficar ali pela eternidade.

Assim, a vida. José tem menos de um ano e a sabedoria que muitos de nós deixamos escapar.

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Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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