top of page

ENCONTRO

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton
  • 14 de jan. de 2019
  • 3 min de leitura

Gielton

Saí cedo em direção ao Detran. Pensei: vai ser fácil. Reservei minha manhã. Tempo não seria problema. Vou economizar uns 300 reais do despachante.

Na esquina da Amazonas a jovem me aborda. Abri o vidro.


- Vai fazer transferência?

- Sim.

- Já pagou a guia? Está com protocolo?

- Sim.

- Fez o agendamento?

- Não.


Foi aí que dancei. Estranho, as pesquisas na Internet indicavam agendamento apenas para outras cidades.

Como se lesse meu pensamento rapidamente completou.


- Desde o dia 17 é obrigatório o agendamento. Cinco reais para fazer.

Pronto, fui pego.

Ela entrou no carro. Logo que estacionei examinou detalhadamente os vidros.

- Esse Insulfilm passa. Veja está com 70%. Mas o de trás, não.

- É mesmo? - Respondeu o bobo

- E pior, vão mandar arrancar na hora e, certamente, estragar o desembaçador.

- Será?


Quanta imbecilidade. Vê se pode? Arrancar o Insulfilm com a unha... Em seguida vem a cartada final.


- Por setenta reais o despachante te acompanha. O vistoriador nem olha o carro, apenas grava o chassis.


O troxa topou.

De fato, os policiais civis fizeram vista grossa. Nos boxs vizinhos a vistoria era mais fina.

Passamos...

Recusei a última oferta e fui, eu mesmo, enfrentar a fila. Sentei-me com a senha na mão. Calculei. Vinte pessoas seriam atendidas antes de mim.

Hora de colocar as emoções em dia. Nossa, como fui babaca de cair nessa lorota? Que raiva! Deveria ter ido eu mesmo e enfrentado de peito aberto aquela porra de vistoria... Se os caras mandassem voltar eu voltaria! Quanta bundice. Estragar o desembaçador! Essa foi demais. E o papel do agendamento? Nem vi.

Com o medo ainda colado em mim, vieram outros pensamentos. E se tiver multa? Não vou conseguir tirar esse documento. E se o IPVA não tiver sido processado? Vão me mandar voltar outro dia. E se faltar algum documento? E se...

Um olho no coração e outro no painel... Esses atendentes são todos uns fdp!!! Tudo policial escroto...



O próximo sou eu.


- Bom dia - Cumprimentei gentilmente.


É melhor não falar demais. Sei lá, e se resolve encrespar?

Entreguei os documentos. Engraçado, comecei a me acalmar. O atendente, um sujeito de meia idade, transmitia alguma serenidade. Era, ao mesmo tempo, ágil e cuidadoso. Lia e organizava os documentos. Conferia tudo. Parecia de poucas palavras.

- Veja que na nova identidade já consta... Não precisava trazer a certidão de casamento.

Me devolveu a original e, como quem cuida do outro, disse.


- Guarde-a com carinho. É um importante documento.


Fui me desarmando. Pedi para corrigir um pequeno erro de digitação, prontamente atendido.

Notei ao fundo funcionários surdos e mudos se comunicando por gestos. Uma jovem se aproximou e, com as mãos, disse algo que não entendi.


- Tem muitos surdos trabalhando, né? - Tomei coragem para puxar assunto.

- Sim, acho que nessa sessão são uns oitenta.


Elogiei a iniciativa do Detran confirmando a importância desse tipo de inclusão. Ele concordou. Começou a contar casos.


- Tá vendo essa que chegou perto? Mora em Santa Luzia e foi sua primeira e única oportunidade de emprego.

- Que coisa boa! - Devolvi prontamente.

- Aquele maior, no centro, desenha que é uma beleza. Seria o melhor retratista falado da polícia... Um talento desperdiçado. - Dizia com tom levemente embargado.


Contou, em seguida que, já com alguns anos de casa, o enviaram para o setor de carteiras. Quase todos os funcionários eram surdos e mudos. Argumentou com a chefia que não daria conta. Ao final concluiu:


- Não existe salário que pague a riqueza dessa experiência. Tornei-me outra pessoa...


O agradeci profundamente pelo excelente atendimento. Despedimo-nos, ambos, com os olhos marejados de lágrimas. Vi os deles por entre as lentes transparentes.


Assim, a vida. Encontros "casuais" para transformar nossa energia.

Comments


Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

  • Ícone de App de Facebook
  • YouTube clássico
  • SoundCloud clássico
bottom of page