top of page

LAUDO

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton
  • 17 de mar. de 2021
  • 2 min de leitura

Gielton



Estou ainda sobre efeito da biópsia. Uma parte de mim foi e voltou em letras ininteligíveis.


— Seu tumor foi maligno — disse o doutor.


— E abolido por inteiro — completou em estado de missão cumprida.


Vontade de derramar lágrimas, ali mesmo, no meio do consultório. Deixá-las caírem soltas, esparramadas aos montes pelos olhos, um deles ainda ferido pelo bisturi. Sensação de incompetência na vida. Sentimento de "não sei porque aconteceu comigo". Vontade de desfalecer...


Não, não posso. Preciso manter a postura. Ouvi o médico dizer que foi totalmente retirado? São raras as reincidências? Lorota... Como o exame sabe disso? Sem lógica. É, mas dos males o menor, quem sabe? Posso me aderir a isso. Não sei... Não sei de nada... Nem quero saber... Nem sei o que devo sentir...


Desaconselhou a viagem planejada para revisitar o mar, a areia, as ondas... Muito Sol e água não seria bom para as vistas. Tá bom. Isso é "o de menos". Já viajei tanto nessa vida. Era só mais um feriado mesmo. Podemos arrumar outro lugar para descansar. Não quero pensar nisso agora.


Deixe-me ler esse laudo. Já não enxergo nada sem os óculos. Logo eu que tinha o maior orgulho de ter uma boa visão. Pus as lentes. Confesso, não entendi patavina. Palavreado indecifrável. Vontade de lacrimar. O que falam de mim? Da minha vista? Que eu nem sei?


O coração desceu apertado dentro do elevador. Recolhi-me em um canto daquele cubículo como se não fosse ninguém. Vixe, onde está o cartão que libera a roleta? Ainda bem que sou organizado. Me acho... Enfiei a mão no bolso esquerdo, saquei o cartão, inseri no buraco quase sem enxergar e passei. Ah, livre desse lugar. Livre dessa dor...


Que nada, me perseguiu pelas ruas. Acompanhou como uma sombra. Persistiu atrás e por cima de mim. Sem dó... Era isso que precisava viver? Porque comigo?


Delicadamente minha filha, acompanhante da consulta, falou sobre os apartamentos para alugar. Ouvi com atenção dividida. Estava lento no pensar. Talvez ela quisesse me distrair. Mudar meu foco. No entanto, disperso permaneci.


— Consegue mesmo dirigir pai?


Nos despedimos. Estava sozinho. Eu e eu. Eu e minha alma. Poderia chorar tudo. Não quis. As lágrimas empedraram. Disfarcei pensamentos. Uma espécie de serenidade me invadiu. Não me importava com os carros lentos, com o sinal fechado, com o trânsito chato. Era como se ali não estivesse. Flutuava solto no ar, distante das migalhas do desnecessário. Como se o rumo da vida desarrumasse e a linha da existência, frágil como uma pena, se soltasse no vazio. Um vácuo em forma de nada empalidecia meu contorno. Quem sou?


— E aí, como foi?


Minha mulher pergunta antes de eu terminar de abrir a porta.


— É maligno, mas foi todo retirado.


Caiu em prantos. Senti-me amado.


Imagem do post em <https://pin.it/53KCqHq>

Comments


Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

  • Ícone de App de Facebook
  • YouTube clássico
  • SoundCloud clássico
bottom of page