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LOTAÇÃO

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton
  • 29 de abr. de 2020
  • 3 min de leitura

Gielton


Aos sete anos me ingressei no grupo escolar. Via pelo retrovisor da vida a ingenuidade do jardim de infância se afastando. Galgaria outros degraus. Coisa séria de gente grande. Até parece! Fora minha dificuldade com ortografia, me dei bem nessa empreitada.


Não me abalei com a vastidão do Francisco Sales. Depois do saguão da entrada havia uma enorme área aberta rodeada por salas de aulas. Pilares com detalhes em alto relevo seguravam o telhado cujo beiral avançava levemente para dentro do grande retângulo central. Em tempos de chuva seguia pelo corredor coberto, fazia a curva lá na frente para ir ao banheiro. Nada que um menino esperto, com boa visão espacial, não aprendesse rapidamente.


A jardineira listrada deu lugar ao short azul marinho. A camisa branca de botões, por dentro da bermuda, sombreava o ar de seriedade. O sapato preto e as meias da mesma cor alcançando os joelhos compunham a aparência de retidão. Assim me vestia todos os dias. Além do uniforme ultra bem passado, minha mãe penteava de lado meu cabelo encaracolado, levemente alisado. Saía de casa um brinco.


A merendeira vermelha com o orifício para a garrafa de suco herdei do Jardim de Infância. Ganhei nova uma maleta com alça e fecho de fivelas, além dos lápis de cor, da régua, da borracha e dos cadernos. Esses últimos, primorosamente encapados pela minha mãe. Impressionava-me sua habilidade em cortar o plástico, fazer a dobra no canto e pregar o durex. Ficava lisinho e macio como a pele. Sem rugas.


Meu pai me conduzia logo depois do almoço. De casa até o ponto de ônibus era um pulinho. Ele acenava. A lotação parava. Ouvia o chiado da porta traseira se abrindo. Minha perna mal alcançava o degrau. Subia apoiando nos corrimões. Algumas vezes passava debaixo da roleta outras, formava um corpo único com meu pai e, juntos, atravessávamos para o lado pago. Era como se houvesse um decreto tácito. "Crianças não pagam passagem".


Quase sempre me sentava na janela. Na verdade, ficava em pé com o rosto colado na alça do banco da frente. Viajava na paisagem. Pessoas transitando entre lojas, algumas muito famosas, como a Mesbla e a galeria do Ouvidor. Carros espremidos entre ônibus. Motocicletas tirando fina. Uma confusão de pedestres...


Atentava-me preferencialmente para o interior. Encantava-me o trocador. Não sei por que, mas considerava nobre sua profissão. Nada a ver com o dinheiro que recebia. Talvez pela posição mais alta dentro do ônibus. Pela visão privilegiada.


Admirava o motorista, nem sempre uniformizado. A cada parada acionava, do seu lado esquerdo, o sistema de abertura das portas. O motorzão no meio era estupendo, apesar de barulhento. Em movimentos bruscos e coordenados acionava a alavanca das marchas a todo instante. Ficava pensando, "quanto domínio". O volante, maior do que dois braços juntos, exigia esforço para girar. Era preciso vergar o corpo, firmar os pés para manter o veículo na curva. Tudo muito concatenado... Quando posto a funcionar, o limpador de para-brisa quase me hipnotizava. Ficava paralisado vendo a borracha deslizar sobre o vidro em um vai e vem lento, arrastando gotículas e desanuviando a vista. Fantástico!


Ao lado, meu pai apontava destaques pelo caminho. "Essa aqui é a Amazonas". Com pouco tempo dominei o trajeto. Depois da Raul Soares, onde estava o JK, o ônibus entrava à direita. Aí, descíamos no segundo ponto. Era só atravessar a rua e já estava praticamente dentro da escola.


Minha mãe quase matou o meu pai quando ele revelou ter me deixado ir sozinho para a escola. "Você é doido? Ele é uma criança!" Sentia-me digno da confiança do meu pai e seguro da minha capacidade. Jamais erraria o ponto de descer. E no mais, atravessar a rua não era problema. Havia sempre um guarda parando os carros para dar passagem aos estudantes.


Mas tinha um medo. Quase pavor! E se ninguém puxasse a cordinha para acionar a parada da lotação? Ela era alta. Por mais que esticasse o braço, não a alcançaria. Em pé, perto da porta da frente, examinava as pessoas e desejava ardentemente que alguém fizesse o movimento. Aguardava ansiosamente a campainha. Até que, para alívio da aflição, ouvia o "peeennn". Devia ser o meu anjo da guada cuidando de mim. Ele nunca faltou!


Só sei que minha vergonha jamais venceria um simples pedido real de ajuda. "Por favor, você pode dar o sinal para mim?"


Assim, a vida. Crescemos, mesmo sem querer.

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Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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