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O CHAVEIRO

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton
  • 26 de set. de 2018
  • 4 min de leitura

Gielton


Altair foi um grande amigo de infância. Filho de lavadeira. Sim, naquela época havia as lavadeiras que traziam trouxas de roupas dos mais abastados para suas casas. Depois de lavadas e passadas eram devolvidas em fardos que muito ajudei a carregar. Levávamos, equilibrando na cabeça, aquela montanha de roupas muito bem acondicionada em um lençol amarrado pelas extremidades.

Para mim era uma brincadeira. Para o Altair trabalho, obrigação familiar da qual sentia vergonha. Negro, pobre, de vida difícil... Sua mãe, também negra, pobre, lavadeira, analfabeta. Éramos vizinhos na Nova Granada. Eu morava em uma casa própria. Ele, em um barracão, pequeno, de três cômodos, alugado. Tínhamos a mesma idade, morávamos no mesmo bairro, mas vivíamos em realidades muito diferentes.

Nossa convivência durou uns cinco anos, até que se mudaram para o Barreiro. Financiaram uma casinha em um conjunto habitacional pelo BNH. Visitei-os várias vezes em almoços domingueiros, depois, pelas transcorrências da vida, sumimos um do outro. Nunca mais nos vimos. Gostava muito desse camarada, confidente, companheiro...

Em nossa rua, um pouco mais abaixo, viviam três famílias. Eram três irmãos, cada um com sua casa, simples, tipo barracão, mas em um terreno que os pertencia. Uma das filhas, a Vilma, durante um tempo, estudou também no Municipal Marconi. Digo, também, porque, meu pai conseguiu duas vagas nessa excelente escola da cidade. Uma para mim e outra para o Altair. Começamos na "quinta U", a última quinta série do colégio, onde eram alocados os alunos novatos, oriundos dos vários bairros da cidade. Nesse tempo, as turmas eram separadas por gênero e mérito acadêmico. Imaginem, os meninos em uma sala e meninas em outra. Não era muito longe de nossas casas. Ficava na Contorno, famosa avenida em BH que circula toda a cidade. Quem morava externamente à Contorno, como nós, era periferia.

Íamos à pé, eu, Altair e a Vilma, para o Marconi, no turno da tarde. Era bonitinho, nós três, entre 11 e 12 anos de idade, atravessando alguns bairros para chegar ao colégio. Éramos boa companhia para a Vilma. Além de protegê-la de eventuais abusos que uma garota sozinha poderia sofrer, conversávamos e nos divertíamos nesse trajeto.

Vilma era de poucas palavras, tímida, introspectiva. Bonita. Pelo menos eu achava. Nas primeiras vezes, lembro-me bem, ela ia acanhada pelos cantos, enquanto eu e Altair, já velhos conhecidos, conversávamos e brincávamos o tempo todo. Aos poucos, ao longo do ano, viramos três. Enturmamos e ganhamos intimidade.

Em pouco tempo me apaixonei pela Vilma. Seu jeito sério e centrado me atraía. Declarar-me? Nem pensar! Ficava, então, no amor do pensamento, relembrando os detalhes de sua face coberta de pequenas pintas que lhe dava um charme especial. Gostava do seu jeito de andar, da forma como se dirigia a mim. Ficava imaginando dando-lhe as mãos e passeando por aí, mas morria de vergonha quando nos esbarrávamos pelo caminho. Será que Altair também se apaixonou por ela? Nunca soube disso. E assim, passamos juntos o ano de mil novecentos e...



Minha admiração pela Vilma crescia a cada dia. Era encantado pela sua pessoa, pelo seu jeito, pelas suas habilidades. Boa nos esportes jogava queimada muito bem. Tínhamos contatos também nas brincadeiras de rua. Uma das que mais gostava era "pera, uva ou maçã". Um menino ou menina de olhos vendados, escolhia alguém usando as palavras "pera", que significava aperto de mão, "uva", abraço ou "maçã", beijo. Era um risco, tanto para quem escolhia quanto para o escolhido. A tensão corria pelas nossas veias. Será que é a Vilma? Vou pedir "maçã". Não, não, não me escolha!!! Ah, que alívio. Lógico que o grupo criava suas artimanhas para favorecer ou sacanear um ou outro. Brincamos muito com as primas da Vilma.

Acho que era janeiro, não estou bem certo, e viajamos de novo para a praia, dessa vez para Guarapari. Meu pensamento e energia tinham ficado em Belo Horizonte. Meu coração estava ocupado pela Vilma.

Brinquei e curti muito a viagem com primos, tios e irmãos. Minha mãe, uma das principais organizadoras dessas viagens, alugava uma casa grande e dividia todas as despesas com um monte de gente. Teve vez de termos mais de vinte pessoas em uma casa.

Ganhei nessa viagem uma prancha de isopor. Brinquei tanto, mas tanto de pegar jacaré que esfolei minha barriga ao roçar na prancha. Tivemos, eu e meu irmão, cuidados especiais da mamãe para curar a ferida. Depois, descobrimos que nadar de camisa resolvia o problema. Era das brincadeiras preferidas. Se deixassem, passávamos o dia inteiro dentro d'água com a tal prancha, onda após onda.

Quase sempre íamos a Vitória visitar a fábrica de bombons "Garoto", todos deliciosos, ao meu gosto. Dessa vez, entrei em uma loja com a minha mãe. Andei, rodei e depois de muitas dúvidas, medos e incertezas comprei, com minhas parcas economias, um chaveiro. Seria meu presente para a Vilma quando voltasse. Passei horas admirando o chaveiro e pensando em como entregar meu presente, a lembrancinha que havia trazido da viagem. Foi foda. Difícil à beça.

Tentei combinar com ela várias vezes, mas não tinha coragem. Na hora "H" algo sempre dava errado. Eu gaguejava... E, e...

Era um dia de semana normal e, finalmente, marquei o encontro na esquina da nossa rua ao meio dia. O sol rachava no alto. Tomei banho, me arrumei todo com a minha melhor roupa de festa. Só não passei perfume porque não tinha na época. Desci para a esquina. Ela não sabia de nada. Eu, na maior "sem graceza" do mundo, disse:

_ Vilma, queria dizer que gosto muito de você. Trouxe-lhe esse pequeno presente do fundo do meu coração.

Mostrei-lhe o chaveiro. Era uma peça de madeira rústica, com uma inscrição: "lembrei-me de você". Foi a forma mais sincera e genuína de dizer o quanto ela preenchia a minha mente e o meu coração.

Ela pegou, olhou, devolveu e disse:

– Não posso aceitar.

Tudo isso durou uns três minutos que para mim foi uma eternidade. Fiquei sem argumentos. Voltei chorando para casa.

Nunca conversamos, jamais lhe perguntei sobre o motivo da sua decisão. Só sei que aquela cena, ao meio dia, com forte palpitar no coração e uma enorme decepção amorosa, retumba ainda hoje dentro de mim.

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Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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