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O TRATOR AMARELO

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton
  • 17 de fev. de 2021
  • 3 min de leitura

Gielton



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José despertou ao alvorecer, como de costume. Da nossa cama ouvíamos sua conversa atravessada com o pai. Por cima dos seus dois anos e pouco fala como gente grande. Articula frases intencionalmente completas.


Convidei-o a cavalgar na sua mini bicicleta sem pedais até a padaria. Passou tímido na primeira poça d'água, evitando molhar os pés. Pouco depois, despudoradamente adentrou uma a uma perguntando "posso entrar nessa, vovô?" De pertinho respondia: "pode". Isso é que é viver o presente, cada átimo de segundo! Sentir a vida girar como a roda da bike transpassando os pequenos buracos enlameados.


Após o café...


— José, vamos para a praia?


— Ainda não vovô. Estou brincando com meu ônibus.


Sua memória do mar, da areia e da água, das ondas e das piscininhas na maré baixa são nubladas. Além do mais, computa afetivamente, sem calcular, cada instante. Investe nele, antes de seguir adiante.


Estacionou o ônibus laranja que Papai Noel trouxe e partimos.


O parquinho público quase em frente ao nosso portão o atraiu. Brincou! Como brincou! Subiu e desceu os escorregas de baixo para cima, de lado, de frente. Experimentou posições, reconheceu atritos. Eu, sem pressa, deixei-o à vontade, até que, por si, abandonou a diversão e alcançou a rua.


Seguimos, dessa vez a pé, penetrando poça a poça na rua de terra. Chovera na noite anterior. Era como se a cada encharcada a surpresa do oculto por baixo da água barrenta, emergisse ao tocar os pés no fundo.


Na esquina, estacionado, estava o trator amarelo da prefeitura. Novinho, arrumadinho. Magnetizado pela máquina pediu para subir. Impossível medir o brilho em seus olhos. Era como se criança e máquina unificassem seus desejos. Sentia-se o tratorista. Brincamos. Em certo momento disse.


— Vovô, eu não sou o José. Eu sou o moço, o moço do trator.


— Moço, vou colocar areia na caçamba!


Sorria atento olhando para trás, observando-me. Estileque... Estileque...


— Moço, pode ir agora. Por aqui!


À frente do motor eu apontava com as mãos os caminhos. De repente, ordenava parar, pois um carro iria transpor. Pura fantasia de avô e neto. Enquanto isso, ele girava o volante para um lado e para outro, balançava no banco e fazia rum, rum, rum...


— Moço do trator, me dá uma carona?


Em pé ao seu lado fingia de ajudante. De repente, movia uma ou outra alavanca, curioso a cada detalhe. Nos divertimos nesses momentos de benevolência, de amizade e brandura um com o outro.


Eram 6:30h, do dia seguinte, quando partimos, eu e ele, em busca do trator.

Notei, uma esquina antes, a falta da engenhoca. Espantei! Nunca imaginaria que tão cedo pela manhã, já estivesse a trabalho. Avisei.


— Iiiii, José, acho que o trator não está...


Fomos aproximando...


— Está sim, vovô. Eu tô vendo ele... Eu tô vendo ele...


Seu desejo de brincar era tamanho que fantasiou. Quando a realidade lhe acometeu, encolhi meus joelhos, cheguei pertinho de seus ouvidos e disse.


— Sinto muito! Sei o quanto queria brincar. Eu queria tanto quanto você... Mais tarde a gente volta.


A feição de choro lhe estampou o rosto. A decepção implodiu dentro de si, mas as lágrimas não escorreram. Algo o confortara. O jeito foi seguir adiante!


Alguns dias depois...


Carecia desfrutar até a última gota seu derradeiro dia. Havia certa aflição em seu caminhar. "Está lá vô, meu trator amarelo!" Brincamos umas duas horas. Não o tiraria dali por nada nesse mundo. Pra quê? Subi na caçamba enquanto ele pilotava. Invertemos. Aprendeu a escalá-lo sozinho. Repetiu essa manobra inúmeras vezes. O painel, as alavancas e pedais eram puro mistério. "Para que serve, vovô?" A criança em seu interior sopitava de regozijo. No seu computar afetivo nada importava além de brincar de trator amarelo!


Cedinho, no dia seguinte, em sua cadeirinha, da janela do carro, nos despedimos. Vão em paz!


O que fazer? Com um vazio enorme no peito caminhei até a padaria. Sozinho. A carência do meu companheirão de todos os dias doía o peito. O trator amarelo estava lá, intrêmulo na mesma área.


Parei. Espiei os lados. Chorei sozinho. Disfarcei e segui.


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Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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