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PIRAPORA

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton
  • 9 de dez. de 2020
  • 3 min de leitura

Atualizado: 17 de dez. de 2020

Gielton



Cansei-me da Lelê. Aquela amizade aguda mais me fazia mal do que bem. Era muito legal ser amigo íntimo de uma garota, mas venhamos...


Estava preso entre farpas. Em torno de mim um emaranhado imobilizava meus passos. O coração, entre sonhos e desejos, não conseguia alforriar-se. Algo me agrilhoava. Uma mistura de intuição de ter encontrado a mulher da minha vida, com o medo de escapar entre dedos. Ficaria à deriva na vida. Afinal, dera passos largos na busca do amor. Voltar e refazer o caminho em outros mares parecia muito custoso.


A grande turma planejava, para as próximas férias de janeiro, uma longa viagem partindo das águas do São Francisco. Era "moda" entre parte da juventude, descer de Pirapora a Juazeiro, no famoso vapor Benjamin Guimarães e, de lá, emanar pelas ramificações do nordeste. Eu e ela estávamos nessa.


Nas semanas antes do embarque a angústia me abraçou. Pensamentos brotaram em ramos atormentando minha paz. Não suportarei estar em mais uma viagem com a Lelê sem ficar. E se ela arruma alguém no caminho? Morro ali mesmo de infarto por amor não correspondido. Decidi. Não vou. Elejo arriscar a vida sozinho. Sei lá, para o sul do país. Lado oposto para manter distância. Sabia, desde essa época, que não existe lonjura para o sentimento. Apelei assim mesmo, quase convicto.


Ela surpreendeu-se com meu comunicado. Ainda mais o motivo alegado. Desejava viver uma experiência sozinho. Era hora de me virar. Conhecer outras paragens, e blá, blá, blá... Nada falei sobre nós. Aceitou, mesmo sem querer.


Voltei atrás, mas internamente decidi estar sozinho em busca de novas amizades e, quem sabe, um novo amor. Mesmo ao seu lado, o tom do desprezo deixaria a Lelê para trás, pelo menos nos meus planos. Partimos juntos com mais uma super amiga.


Em Pirapora, na casa de uma amiga da amiga, descansávamos os três na varanda. Deitava sobre a mureta com a cabeça em seu colo. Odiava apertos de unhas entre cravos na face. Sentia exprimido sem razão. Mas, por ela, tolerava tudo. Só para ficar pertinho. E ainda fingia saborear. Mentira pura!


Certa noite, andávamos pelas ruas da cidade quando um cachorro, do lado de lá da grade, latiu destrambelhadamente. O sobressalto a empurrou para mim. Agasalhei com os braços. Tiramos proveito e ficamos agarradinhos até o próximo quarteirão. Só isso. A amiga murmurou:


- Humm. Cês dois, heim.. Tem coisa aí.


Negamos de pés juntos.


Trocaram o charmoso Benjamin Guimarães, pela "barranqueira", um pequeno barco atracado a uma enorme "chata". De tão grande, usava o barranco para manobrar. Embarcamos à tarde. Muitos amigos em volta. O ambiente era de festa, alegria e encontros.


Bateu ciúmes só de ver o tal Newtinho, pouco mais velho que nós, com quem Lelê já havia ficado. Mal o cumprimentei. E se ela se encanta novamente? Meu coração perguntava. Foda-se. A mente respondia.


Cuidei de mim nessa tarde sobre as águas do rio. Conversei, tratei pessoas, cultivei olhares. Caminhei pela imensidão da chata, apreciei o curso das águas, a mata, as nuvens... Deixei Lelê pra lá, ansioso por saber como estava.


No escurecer, os viajantes locais armaram suas redes. Muitas, espalhadas pelo salão do barco. Desprevenidos, estendemos no chão nossos sacos de dormir. Eu no meio, Lelê de um lado e nossa amiga do outro.


Conversamos sobre o dia. Trocamos impressões, esperanças, planos... Algo diferente pairava, como se a atmosfera do susto do cão nos envolvesse e abrisse uma brecha para a intimidade. A voz da amiga distanciou como ondas dispersas sumidas ao longe.


Os anjos favoreceram. Não sei como, nem porquê. Me virei para a Lelê e deixei a amiga de lado tagarelando. O mundo em volta emudeceu. O tempo, em câmera lenta, trazia suavidade nos movimentos. Transpassei meus braços sobre ela. Depois, enquanto meus dedos passavam docemente seus cabelos por trás da orelha, os olhos se olharam bem de perto, pupila a pupila. A palma da mão tocou delicadamente sua bochecha. Enfim, os lábios úmidos se encontraram. Ficamos entre nós no meio da multidão.


Foi a melhor noite da minha vida!


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Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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