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PÓ DE ARROZ

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton
  • 20 de jun. de 2018
  • 3 min de leitura

Gielton

Meus pais sempre foram muito organizados. Mamãe gosta, até hoje, de cada coisa no seu lugar. Tirou, voltou. Ai se deixar fora do lugar!! As decisões eram tomadas em conjunto e havia coerência. Não dava para fazer aquele jogo de criança: “Vou pedir ao papai, que ele deixa”. A resposta de ambos era sempre a mesma: vamos conversar primeiro para ver.

Não éramos pobres, nem passamos fome, mas tudo era regrado. O bife do almoço? Um para cada. Maçã? Só quando ficava doente. Refri, só nas festas. Brinquedos? A gente tinha que esperar um ou dois meses, ou até anos, para ganhar, quando o dinheiro economizado desse.

Quando percebi, com oito anos de idade, eles já tinham comprado a casa própria. A pensão familiar já tinha cumprido seu papel, os primos já formados. Vida nova que começava na Nova Granada. Infância feliz que se anunciava, não sem seus problemas de adaptação. Era uma casa grande, três quartos, sala e copa. Descendo as escadas da cozinha, havia um quintal. Nem tão grande, pois era um lote normal, mas para mim era enorme. Brinquei muito de caubói no milharal que minha mãe plantava. Eram árvores gigantes, dava até pra gente se esconder. Dos milhos verdes, mamãe fazia um delicioso mingau. Eu vivia tirando pedaços, na geladeira, às escondidas. Ah, se minha mãe me pega! Não gostava quando ela doava vasilhas do mingau de milho verde para parentes. Queria tudo só pra mim.


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O bairro era longe pra caramba. Nossa rua era a última, de terra batida. Ainda não tinha esgoto. Meu pai cedia água para os vizinhos do fundo, onde a Copasa ainda não tinha canalizado. Havia um único acesso, que dava uma volta grande pela avenida Amazonas. Às vezes, ficávamos horas esperando o ônibus para ir ao centro da cidade, morávamos praticamente no interior. Os vizinhos se conheciam e se ajudavam.

Depois de longa espera e custo bem alto, adquirimos um telefone fixo, que era partilhado com todos. Ao lado, gritávamos, "Nai, telefone!” Em frente, mamãe pedia: "Gielton, chama a dona Gracinha para atender o telefone..." Todo mundo conhecia todo mundo.


Hoje seria chamado de bullying, mas, no meu tempo, era brincadeira de criança. Logo que mudamos, me apelidaram de "pó de arroz", por ter a pele um pouco mais clara e pela minha fragilidade. Tinha só oito anos e, por mais descolado que fosse - até ia de ônibus sozinho para o grupo escolar - não tinha as manhas dos meninos da rua. Odiava esse apelido. Às vezes, me debruçava na mureta da escada da cozinha, que dava para o quintal. Dali podia ouvir quando algum moleque, passando na rua, me via meio que deitado no corrimão e gritava: “ô, pó de arroz!” Nossa! Meu sangue fervia...


Ao lado da nossa casa, muro com muro, moravam várias famílias em barracos alugados. Dentre elas, a do Seu Zé, carroceiro. Isso mesmo, ele tinha uma carroça e prestava serviços de transporte de todos os tipos de materiais na região. Tinha vários filhos. O Raimundinho, um pouco mais velho do que eu, baixinho e patola, que, nessa época, já ajudava o pai com a carroça. O Edinho, mais novo que eu, e o Zé, mais velho que os dois e com problemas mentais. Ele não batia muito bem da cabeça, não falava coisa com coisa, mas não era agressivo. Tadinho, foi foco de muitas gozações da turma.

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Um dia, descemos todos para o campinho. Deviam ser uns quinze meninos, a maioria mais velha que eu. Provavelmente, por motivos banais, iniciou-se uma discussão que terminou em briga entre eu e o Raimundinho. Já pensou, eu, lutando contra o baixinho musculoso que carregava objetos pesados na carroça do pai? Tô fodido. Não sei o que deu em mim. Enfrentei o colega com tanta voracidade que, depois de rolarmos, engalfinhados, na grama, consegui dar um golpe, imobilizando-o. Estava sentado sobre sua barriga, dominando totalmente a situação. Era a hora de esmurrá-lo com vontade. Ao invés disso, lhe dei três soquinhos, bem de leve, no rosto. Nunca mais me chamaram "pó de arroz".

Revisão: Maria Lucia Pompein Pessoa

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Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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