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PARA QUE TER MEDO DE AVIÃO?

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton
  • 11 de jun. de 2020
  • 3 min de leitura

Atualizado: 17 de jun. de 2020

Gielton



Desde tacanho algumas coisas me fascinavam, sem motivo aparente. Esses registros de memória são antes dos oitos anos - isso em mil novecentos e tantos. Nunca fui muito fã de animais, tinha medo até de galinhas. Uma vez, correram atrás de mim lá na fazenda da minha tia em Dores de Guanhães. Gatos, nem se fala. Para mim, estavam sempre prontos a atacar. Aquele jeito cabreiro acompanhando nossos movimentos de olhos antenados, captando cada detalhe. E se pula em cima de mim com suas unhas afiadas a me rasgarem? Os cachorros são mais gentis. Aceitam carinhos. Mas, só depois de acostumar com o bicho. Idolatrava os cavalos. Como os admirava! Não sei se pela força impressa dos músculos à vista. Talvez pela imponência e altivez. Quem sabe, pela amabilidade em nos aceitar em seu lombo. Zorro era das minhas séries de TV favoritas, ainda em tons de cinza. A trama era confusa, mas aguardava ansiosamente o desfecho. Sabia do fim quando o herói, em sua capa preta, empinava o garanhão. Era o gesto do triunfo. Plagiava o paladino com uma toalha amarrada no pescoço e uma espada de papelão. Gostava de automóveis. Mais da condução do que da máquina em si. Aprendi, ainda muito criança, os movimentos dos pés nos pedais, mãos no volante e alavanca de marcha. Tudo no reparo em detalhes dos motoristas. Imitava meu pai no banco do passageiro. Até olhava o mundo para trás no retrovisor da Kombi de vez em quando, como se fosse, de verdade, fazer alguma conversão. Lembro-me de, deitado com a face colada ao chão, empurrando carrinhos e contemplando o giro das rodas. Como podem rodar desse jeito? A espécie de fluxo contínuo, sem início, meio e fim, me deixava atordoado de tanto mistério. Pelejava para acompanhar o rodeio, mas me embaralhava todo tentando encontrar o fio da meada. Estirava de barriga para cima na sacada do apartamento no centro da cidade. No vão entre a mureta e o teto contemplava o céu azul. Nuvens moviam-se rente ao topo do prédio. Regozijava de prazer com a sensação de cair, uma espécie de tombo. Como se o edifício e tudo junto fosse lentamente abaixo até deitar sobre a avenida. Nas primeiras vezes tive medo. Depois me acostumei. Era gozo puro. "Huuuuu... Estou indo... Caindo, caindo..." mas nunca caía. Então, flutuava. Adorava alguns sonhos. Corria até o alto de uma colina e me jogava. Em câmera lenta planava no ar como um albatroz. Literalmente voava até tocar suavemente o chão, correr de novo, pegar o embalo e subir... Acordava em êxtase. O desejo era continuar em levitação de alma. Permanecer no mundo leve. Um mundo sem pressões e amarras. Tinha também meus pensamentos malucos. Certa vez, conversavam em casa sobre acidentes de avião - acho que havia acontecido recentemente no Rio de Janeiro - meus primos e parentes diziam dos medos de voar. Era o medo da morte rondando, aproximando, mesmo à distância, na dor dos outros. Comigo e em silêncio, afirmei categórico e seguro: para que ter medo de avião! Se um dia andar de avião, não terei medo algum. Estando lá no alto, se suceder uma pane, ergo calmamente do assento e caminho até a porta. Peço ao motorista para abri-la. Então, quando o avião estiver pertinho do chão, pulo e saio andando. Mantive esse segredo por anos a fio! Até hoje.


Assim, a vida. Tempos de criança que não voltam mais...


Imagem do post <https://pin.it/1R5TwsA>

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Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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