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Atualizado: 29 de nov. de 2023


Tabuleiro de xadrez com peças caidas



Naquela manhã, deitou-se sobre o piso do quarto. Escolheu um canto diferente, como se a intuição lhe alumiasse. As palmas da mão imobilizadas permaneciam relaxadas ao lado do tronco com a barriga voltada para o topo. Enquanto a respiração amainava, focava o pensamento em partes do corpo. Primeiro os pés, depois a panturrilha, subindo até os joelhos... Seguia o ritual aprendido no livro das vibrações.


De repente, um estado intermediário entre o sono e a vigília o levou para um cenário vivo e real, como se estivesse dentro de um filme no qual era o ator principal. No entanto, o script não estava pronto. Moacir definia o próprio enredo. Tinha o controle da situação. Subia uma colina acompanhado de outros homens. Cavalos, vacas, porcos e cachorros se misturavam à gente do povoado. Casebres bem modestos de telhas de palha ao pé da colina tinham em suas portas pessoas maltrapilhas e assustadas. Havia uma tensão no ar. Envolto em uma espécie de armadura que lhe pesava os braços, Moacir apontava uma ou outra choupana. Os soldados que o acompanhavam desciam para buscar mulheres. A dor espalhava-se. Os choros em forma de gritos e pedidos de clemência retumbavam. Sem dó essas famílias eram mutiladas. Mães, esposas e jovens eram arrancadas, como simples peças de um tabuleiro.


Os cabelos longos caídos sobre os ombros e o olhar, ao mesmo tempo submisso e desafiador daquela mulher em especial, chamou-lhe a atenção. Ela vestia uma túnica branca encardida e uma saia preta bem longa. Quase cobriam os pés descalços e delicados, apesar de ásperos, sinal de quem labuta a terra. Moacir a viu por um relance, suficiente para marcar sua memória.


De súbito, Moacir retorna ao mundo físico. Assustado relembra o sonho e se questiona. "Como sonhei se não estava dormindo? Foi tudo tão real. Eu, poderoso, dava ordens e causava dor. Será que..." Permaneceu absorto, ainda deitado no canto do dormitório, por algumas voltas do relógio.


Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Homem com olhos vermelhos



Voltou para casa quase flutuando. Em estado de êxtase, não por excitação, mas por um flutuar de bondade de um coração inchado de alegria, ouvia distante a canção do rádio. Ela dizia sobre a "luz do Sol que a folha traga e traduz". O caminho de volta foi como uma descida dos céus.


Junto a Clarisse, desinfetaram calmamente peça por peça, sacola a sacola. Enquanto carregavam e descarregavam compartilhou com ela sua experiência. Contou-lhe detalhes. Clarisse acolheu. Devolveu palavras de bem querer. Engrandeceu sua atitude. Sentia se de fato feliz pela transformação de seu marido. Algo de bom prenunciava.


Nesse dia, foi tomar seu primeiro copo de cerveja já bem tarde. Não resistiu e abriu uma atrás da outra, trocando o sono da tarde pela noite embriagada.


Enamorados no banho a dois, antes de dormir, Clarisse olha para Moacir assustada.


— Seus olhos estão vermelhos fumegantes.


— Como assim?


Perguntou Moacir.


— Isso. Parece algo dentro de você que não é você.


— Não compreendo.


— Estou com medo.


A noite foi perturbada. Moacir não se lembrava dos sonhos que teve. Acordou cansado, como se tivesse sido sugado por um canudinho na nuca. Havia algo de estranho acontecendo. Algo fugidio. Algo que escapava pelas brechas do pensamento.


Moacir quase explodia internamente de tanta antinomia. Não cabia em seu peito a paz que sentira no dia anterior com a expressão furiosa do olhar e o medo de Clarisse naquele banho quente e afetuoso.


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Máscara usada na pandemia e compras de supermercado



Era dia do supermercado. De máscara no rosto e lista em mãos se dirigiu à grande venda. O trânsito livre deu-lhe a liberdade da desatenção. Conduzia no automático e o semblante não deixava dúvidas: estava fora do ar. No estacionamento uma criança, menino de uns dez anos de idade, trabalhava de flanelinha


— Posso olhar o carro, doutor.


Disse a criança.

Quase sem perceber balançou a cabeça como um sinal de sim. Estava ausente de si mas, ao mesmo tempo, conectado. Na entrada, esfrega uma mão sobre a outra com o gelado álcool em gel entre elas. Os produtos escondiam-se de seus olhos dispersos sobre as gôndolas. Passava por eles sem notar, mas riscava em suas anotações a cada item escolhido. Só se deu conta de que haviam outras pessoas circulando quando, atrapalhando o trânsito entre corredores, um cliente lhe pede licença. Moacir acorda do mundo da lua e puxa seu carrinho para o canto.


A atendente do caixa, blindada por um vidro transparente, era lenta. Moacir, que normalmente se irrita, nem notou e ensacou tudo sem pressa. A senha do cartão foi também no automático e se lhe perguntassem quanto havia pago, não saberia responder. De volta ao estacionamento abarrotado de compras reviu o garoto. Moacir fugiu do seu padrão e puxou assunto.


— Você olhou meu carro direitinho?


— Claro, doutor.


— Olha lá!


O flanelinha baixou a cabeça em sinal de submissão.


— Porque está na rua? Não sabe que existe uma doença por aí?


— Sei sim, doutor.


— Então?


— Tenho quatro irmãos mais novos e moramos com a minha mãe. No barraco de dois cômodos a geladeira está vazia. Preciso levar alguma coisa — qualquer coisa — leite, arroz, batata, o que seja.


— E o auxílio emergencial? Não está sabendo?


— Sei. Seiscentos reais, né? Minha mãe não conseguiu. Ela não tem um tal PCF. Nem sei o que é.


Como se acometido por uma compaixão maior do que jamais sentira, retirou cinquenta reais do bolso e ofereceu ao menino. Uma espécie de contentamento lhe tomou por inteiro, como se fizesse parte de um mundo que até então não percebera. Um amor fluido pelo outro, pelo mundo, pela humanidade comandou suas rédeas. Sentia-se parte de um todo maior, gigantesco. Se viu de cima como uma luz brilhante, interagindo e socorrendo outra.


O menino, em um sorriso do tamanho do mar, agradecido se virou para seguir, quando Moacir o chamou novamente. Dos três sacos de arroz amontoados no porta malas, deu-lhe um. Puxou do fundo algumas latas, embrulhou na sacolinha e entregou para o menino.


— Leve para os seus…


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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