MISTÉRIOS DO LIVRO AZUL 10|14 — COMPAIXÃO
- Gielton
- 9 de nov. de 2023
- 2 min de leitura
Atualizado: 29 de nov. de 2023
Gielton

Era dia do supermercado. De máscara no rosto e lista em mãos se dirigiu à grande venda. O trânsito livre deu-lhe a liberdade da desatenção. Conduzia no automático e o semblante não deixava dúvidas: estava fora do ar. No estacionamento uma criança, menino de uns dez anos de idade, trabalhava de flanelinha
— Posso olhar o carro, doutor.
Disse a criança.
Quase sem perceber balançou a cabeça como um sinal de sim. Estava ausente de si mas, ao mesmo tempo, conectado. Na entrada, esfrega uma mão sobre a outra com o gelado álcool em gel entre elas. Os produtos escondiam-se de seus olhos dispersos sobre as gôndolas. Passava por eles sem notar, mas riscava em suas anotações a cada item escolhido. Só se deu conta de que haviam outras pessoas circulando quando, atrapalhando o trânsito entre corredores, um cliente lhe pede licença. Moacir acorda do mundo da lua e puxa seu carrinho para o canto.
A atendente do caixa, blindada por um vidro transparente, era lenta. Moacir, que normalmente se irrita, nem notou e ensacou tudo sem pressa. A senha do cartão foi também no automático e se lhe perguntassem quanto havia pago, não saberia responder. De volta ao estacionamento abarrotado de compras reviu o garoto. Moacir fugiu do seu padrão e puxou assunto.
— Você olhou meu carro direitinho?
— Claro, doutor.
— Olha lá!
O flanelinha baixou a cabeça em sinal de submissão.
— Porque está na rua? Não sabe que existe uma doença por aí?
— Sei sim, doutor.
— Então?
— Tenho quatro irmãos mais novos e moramos com a minha mãe. No barraco de dois cômodos a geladeira está vazia. Preciso levar alguma coisa — qualquer coisa — leite, arroz, batata, o que seja.
— E o auxílio emergencial? Não está sabendo?
— Sei. Seiscentos reais, né? Minha mãe não conseguiu. Ela não tem um tal PCF. Nem sei o que é.
Como se acometido por uma compaixão maior do que jamais sentira, retirou cinquenta reais do bolso e ofereceu ao menino. Uma espécie de contentamento lhe tomou por inteiro, como se fizesse parte de um mundo que até então não percebera. Um amor fluido pelo outro, pelo mundo, pela humanidade comandou suas rédeas. Sentia-se parte de um todo maior, gigantesco. Se viu de cima como uma luz brilhante, interagindo e socorrendo outra.
O menino, em um sorriso do tamanho do mar, agradecido se virou para seguir, quando Moacir o chamou novamente. Dos três sacos de arroz amontoados no porta malas, deu-lhe um. Puxou do fundo algumas latas, embrulhou na sacolinha e entregou para o menino.
— Leve para os seus…
<Imagem gerada por Inteligência Artificial>
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