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Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton


Consultório dentário



Algo apoquentava Moacir. Apesar da lógica perfeita — trabalho, sucesso, realizações — a alma clamava. A vida se repetia a cada dia. Sem novidades, sem aprendizados e envolto em uma névoa de pensamentos intestinais e ideias fracas, o planeta parecia parado. Moacir enjoara de si mesmo.


A saúde transpirava bem estar, exceto pela gengiva. Com frequência inchava e doía. Certa vez, em viagem de réveillon, se viu no dia 31 do corrente ano em uma clínica de emergência dentária. O cheiro do pus escorrendo por entre os dentes tomou a mesma proporção do alívio do sofrimento. A receita? Antibiótico por sete dias. Começou a tomar no dia seguinte para não perder a festa. Afinal, não haveria sentido contar a passagem de ano divorciado de seu copo de cerveja, seu fiel companheiro de todos os dias.


Gripava também com certa frequência. Nesses tempos reduzia a ingestão de álcool, mas não largava o caneco. Não era adepto das artesanais. Talvez, nem percebesse sabores. No entanto, incomodava lhe amargores exagerados. Preferia o lúpulo tradicional ao arroz ou milho. Raramente entregava-se por completo às gripes na qual o corpo não pode suportar seu próprio peso e a cama se apresenta como solução. Mantinha uma fraqueza, dores de cabeça e resmas perdurativas. Mas, o copo, esse não largava.


Sua companheira, cúmplice da vida há muitos carnavais, alertava:


— Moacir, você está bebendo demais. Nem quando está gripado larga essa mamadeira. Precisa se cuidar melhor.


O conciliador Moacir, concordava. Até parecia não dar a entender pois, em atitudes, continuava o mesmo. Por dentro, no entanto, refluíam pensamentos e reflexões.


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>



Atualizado: 29 de nov. de 2023

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Lata e copo de cerveja sobre a mesa



Em meio à confusão armada ele ouvia uma vozinha ao pé de ouvido: "abra uma latinha mais". Obedecia em um movimento quase involuntário, mesmo que o copo estivesse ainda cheio. De lata em lata, de copo em copo, de briga em briga, venciam o dia.


O ritual da dupla ia até a refeição entardecida e uma inevitável soneca. A zoeira se misturava aos sonhos estranhos de parcas lembranças. Acontecia uma espécie de apagar desgovernado quando não se percebia o limite entre o antes e o depois. O mundo virava ao avesso e desconhecia o que era frente ou verso.


O gosto de guarda-chuva na boca ao acordar era rebatido com outras três ou quatro birras a noite. Entre filmes e telejornais, solitário permanecia. Nunca fora de botecos e preferia esse alcoolismo ordinário em sua morada.


Muitas vezes Clarisse dormia enquanto Moacir assistia a filmes de todos os estilos e qualidades na TV. Varava madrugadas afundado no sofá, ouvindo tiros, acompanhando perseguições ou decifrando tramas. Era a sua forma de deixar a mente vazia, o que, na real, não ocorria.


O domingo era ainda mais intenso. O retardar ainda maior do almoço, feito a quatro mãos, era a forma encontrada pelo casal de suprimir — pelo menos assim achavam — o tédio daquilo que antecedia a segunda-feira. Banquetes regados a uma boa dose de álcool, correndo das veias ao cérebro, davam a sensação de torpor a que se acostumara. A noite terminava com os gols do Fantástico. Tinham ambos, ainda bem, o mesmo time do coração. Eram devotos torcedores — alguns dizem sofredores — do Clube Atlético Mineiro. Era o prenúncio de mais um dia de trabalho.


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Cenouras sobre a mesa



Há mais ou menos dois anos um "vira lata” que morreu repentinamente, era quem o acompanhava em seus passeios aos sábados. O abdômen avolumado trazia uma doença desconhecida dos veterinários. Aguardavam o resultado de um exame quando, naquela noite, faltou-lhe ar. Sem saber o que fazer, Moacir pegou-o em seus braços. Agonizando, deu seu último suspiro. Moacir chorou lágrimas de tristura por dias a fio. Aquele que abanava o rabo e gritava de alegria com sua chegada, havia partido. Moacir passou dias relembrando seus rituais. Primeiro o banho. Acionava a mangueira no quintal e chamava seu amigo fiel. Vinha cabisbaixo e obediente. Ensaboava cada detalhe. Cuidava de carrapatos e pulgas entre seus pelos curtos. Ficava ainda mais branquinho depois do shampoo. Penteado como uma criança enfeitada pelos pais, iam juntos pelas ruas do bairro. Moacir se orgulhava por não usar coleiras. Educou pacientemente seu cão repetindo comandos de voz. Brincavam juntos, corriam juntos.


Na volta para casa, após duas horas de caminhada com seu amigão, deparava-se com o frigobar abastecido. Destampava a primeira lata antes do banho, tamanha ansiedade que lhe assalteava. O desejo em inebriar-se e o nexo do dever cumprido mereciam a devida recompensa: o prazer em sua máxima plenitude.


Entre um picar de alhos e cebolas com sua mulher no comando da cozinha, tragava outras mais. Faca de um lado, copo do outro. Às vezes, se engalfinhavam em discussões inócuas. Ela pedia cenouras quadradinhas. Ele, de ouvidos desligados, entregava finas e delicadas cenouras circulares. Pronto, era o necessário para quebra paus verbais.


— Que diferença faz?


Moacir argumentava.


— A cozinha está nos detalhes. Você não entende nada!


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>


Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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