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Atualizado: 19 de mai.

Gielton



Chacrinha



Aquele vazio… você já sentiu?


Escarrapachado no sofá, frouxo, de pernas esticadas e cabeça tombada, era como se o vazio da vida penetrasse sua alma.


Eu via, da quina da porta, sua tristeza emergir pela inércia dos sentidos.


Onde estaria aquele homem sorridente que imitava o Chacrinha depois de alguns dedos de cachaça? Os parentes, nas hilárias viagens a Guarapari, rodeavam-no para se deliciarem: "Terezinhaaaa! Quem vai querer?" E com o indicador no nariz improvisava versos em latim!


Anos depois, descobrimos cigarros escondidos no guarda-roupa. Claro, não podia fumar. Aguardente, nem pensar. Torresmo? Um veneno. E a dobradinha do buteco, cujo sabor era especial? De vez em quando, fugia com seu melhor amigo e voltava trançando as pernas como se nada tivesse acontecido.


Seguia um tratamento clínico para as artérias com pequenas borras de gordura, que dificultavam a irrigação do sangue. De vez em quando vinha a dor no peito, descia pelos braços e irradiava pelas costas. Bastava ter calma, colocar o remedinho debaixo da língua e esperar. Passava. Sempre passava.


No mais, daquele coração irradiava um amor sem fronteiras. Estendia-se para além do imaginário. Era amado pela sua energia, pelo jeito leve de levar a vida, pela empatia, pela compreensão do outro. Um homem à frente do seu tempo.


A tal ponte de safena era a cirurgia da época. Retiravam uma artéria de outra parte do corpo, abriam o peito, cortavam o pedaço entupido próximo ao coração e encaixavam uma na outra, como duas mangueiras conectadas. Quem fazia, exibia orgulhoso a cicatriz vertical no tórax, do lado esquerdo. Uma nova vida aberta pelo bisturi, como a de seu amigo, alguns anos mais jovem.


Foi atrás desse sonho. Afinal, a vida com tantas restrições cheirava a amargura, esvaziava-se de sentido. A consulta médica em São Paulo era para avaliar, pensar, examinar e, quem sabe, marcar a cirurgia. Um jeito lento e cauteloso de ser mineiro.


Só que... Os médicos de lá, os ‘bam-bam-bans”, alardearam urgência. De Belo Horizonte viajei de Cometa. Cheguei a tempo de encontrá-lo meio grogue pela anestesia pré-cirúrgica. Abriu o sorriso ao me ver. Disse: “Veio me buscar? Quero ir para casa.”


Nem curti a novidade do que poderia ser a emoção do meu primeiro voo. A cabeça levemente apoiada na janelinha de plástico, olhando para o infinito, refletia a desolação misturada à força que nem eu sabia que tinha. Na flor da minha juventude, fui escolhido para trazer meu pai de volta. A poltrona ao lado veio preenchida com sua ausência. Já não respirávamos o mesmo ar.


Assim, a vida. Não há o "se" quando ela segue o fio que a conecta com a morte.

 
  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Atualizado: 25 de abr.

Gielton


Blog Escrivências - Cabeleira







Levei anos para entender: esses meus cabelos crespos não precisavam de conserto. Precisavam de dono.


O antepassado, meu pai trazia à tona, orgulhoso:


— Meu bisavô era negro. Carrego em mim seus cabelos crespos encaracolados.


Apesar da herança da crina, meu pai era um sujeito branquelo de olhos azuis. Vai entender...


Nasci o mais moreno da família. Cabelo duro, grosso, ondulado e ressecado. Para muitos, quase um "bombril sem utilidades". Seria algum gene? Algo por entre moléculas do DNA?


Briguei comigo por décadas. Lutei contra minha aparência a quase descabelar. Injusto. Poxa, não me deram escolha. Nasci assim. Persegui um modelo estético dentro do caixote. Só que não havia encaixes. Por tempos, senti o peso do aparentemente diferente.


Ainda criança, dormi de touca. Sabe aquela meia de nylon? Pois é, essa mesma. Penteava o cabelo rodando todo para um lado. Colocava a trunfa na esperança de alisá-lo. Depois, invertia o giro e vestia a touca de novo.


No espelho, estranheza. Mesmo aparentemente lisos, os fios subiam como que arrepiados de horror. Não se acomodavam sobre o couro, não balançavam ao vento. Para piorar, na piscina pareciam impermeáveis.


Custei a desistir. Na juventude, disse a mim mesmo: meu cabelo não se engraça com o pente. Assim será! Assumi os cachos. Porém, mal se enrolavam. A vergonha lá no alto os tosquiavam rente ao pé da cabeça, como meu pai, meus primos, meus vizinhos, meus colegas...


Admirava os caras cabeludos, os poucos. Sentia inveja! Talvez, desejo. Vontade de poder ser. Não podia. Quem sabe um novo visual me torne melhor? Azeda ilusão!


Tentei algumas vezes fugir da tesoura. Atravessava a rua para evitar o barbeiro. E se ele me reconhece?


— Nossa, tá precisando de um corte, hein?


O ganho de volume era igual ao da decepção. O espelho desbarrancava a realidade. O danado crescia para cima. Eu, queria para baixo.


Certa vez fiquei tão, mas tão furioso com meu reflexo que, taciturnamente, baixei no fígaro. Em casa, a surpresa...


— Que isso, meu filho?


— Nada, não, mãe, deu vontade de raspar. Só isso...


Por anos a fio mantive fios rentes, comportados, adestrados e doutrinados, como a mim mesmo. É quando não se pensa mais... Vai-se.


Aposentei. Os medos continuam, mas o olhar do outro importa menos. Meus anseios ganharam voz. Posso seguir sem saber o que há depois da curva.


O espelho? Ah, esse continua obedecendo as leis da Física, mas a imagem ao fundo é mais acolhedora. Me vê sem julgamentos. De cá, estou também aprendendo a jogar o "foda-se".


Nunca tive juba tão grande. Quase um leãozinho ao Sol, Caetano que o diga. Há dúvidas ainda, mas... Por ora adotei a tiara para domar a rebeldia ou a gominha para conter o estardalhaço. Sigo contente! Seria meu fio condutor me penteando?


Assim, a vida! Quantas voltas para se (acon)chegar...


 
  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Gielton



Poderia ser desatenção. Outros diriam excesso de concentração. Não importa, o fato é digno de sua narrativa.


Sua filha estava na flor da adolescência. Hormônios pulsavam como pipoca estourando destrambelhadamente. Era um dia como outro qualquer: após a escola regressavam juntos para casa. Ele ao volante, ela, falante.


Relatava entusiasmada o acontecido.


— A turma inteira é apaixonada por ele, pai. Ele é bonito, mas... Sei não, acho meio sem graça e um pouco esnobe.


— É mesmo?


— Você não acredita pai. As duas eram as melhores amigas. Unha e carne. No recreio dividiam lanches e intimidades. Odeio aquilo! O cantinho da arquibancada testemunhava o tititi.


Parado no semáforo ele balbuciou.


— Sei.


Ela seguiu animada sua historieta. De fato, era exageradamente detalhista, mas isso pouco importa.


— Dizem que ele já tinha bebido bastante whisky. Vê se pode pai, nessa idade... Eu, nem toco, passo longe da bebida. Muitos ficantes estavam na varanda. Sabe como é...


Na curva da avenida em meio ao trânsito caótico da hora do rush ele balança a cabeça afirmativamente e diz.


— Sei...


— Foi sacanagem, afinal era seu aniversário de 15 anos. Eu não gosto de nenhuma das duas, mas dizer "bem feito", isso eu não falo não.


Jovialmente vibrante seguiu.


— Cê acredita pai, que pouco antes da valsa ela procurava desesperada seu namorado. Quando entrou naquele cantinho...


Ele interrompeu abruptamente.


— Já vi tudo, já vi tudo...


Confiante que o pai entretinha-se com sua história a menina-moça aguardou sua reação.


— Esse cara é um lerdo! Não tô dizendo?


Esbravejou para si ao mesmo tempo que, em um movimento brusco no meio do morrão, engatou a primeira em seu Pálio 1.0 e, enraivecido, socou o volante.


— Que merda, que merda!


A filha, ao perceber seu pai em outra dimensão, sentiu-se banhada pela decepção. Banho frio, por sinal, daqueles de gelar qualquer conversa acalorada. Acabrunhou-se juntando as mãos entre as pernas. Em silêncio e pensativa permaneceu até a garagem, duas quadras adiante.


Assim, a vida. Pela estrada afora...


Imagem do post em <https://pin.it/2N8azYF>

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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