CABELEIRA
- Gielton
- 17 de ago. de 2022
- 2 min de leitura
Atualizado: 25 de abr.
Gielton

Levei anos para entender: esses meus cabelos crespos não precisavam de conserto. Precisavam de dono.
O antepassado, meu pai trazia à tona, orgulhoso:
— Meu bisavô era negro. Carrego em mim seus cabelos crespos encaracolados.
Apesar da herança da crina, meu pai era um sujeito branquelo de olhos azuis. Vai entender...
Nasci o mais moreno da família. Cabelo duro, grosso, ondulado e ressecado. Para muitos, quase um "bombril sem utilidades". Seria algum gene? Algo por entre moléculas do DNA?
Briguei comigo por décadas. Lutei contra minha aparência a quase descabelar. Injusto. Poxa, não me deram escolha. Nasci assim. Persegui um modelo estético dentro do caixote. Só que não havia encaixes. Por tempos, senti o peso do aparentemente diferente.
Ainda criança, dormi de touca. Sabe aquela meia de nylon? Pois é, essa mesma. Penteava o cabelo rodando todo para um lado. Colocava a trunfa na esperança de alisá-lo. Depois, invertia o giro e vestia a touca de novo.
No espelho, estranheza. Mesmo aparentemente lisos, os fios subiam como que arrepiados de horror. Não se acomodavam sobre o couro, não balançavam ao vento. Para piorar, na piscina pareciam impermeáveis.
Custei a desistir. Na juventude, disse a mim mesmo: meu cabelo não se engraça com o pente. Assim será! Assumi os cachos. Porém, mal se enrolavam. A vergonha lá no alto os tosquiavam rente ao pé da cabeça, como meu pai, meus primos, meus vizinhos, meus colegas...
Admirava os caras cabeludos, os poucos. Sentia inveja! Talvez, desejo. Vontade de poder ser. Não podia. Quem sabe um novo visual me torne melhor? Azeda ilusão!
Tentei algumas vezes fugir da tesoura. Atravessava a rua para evitar o barbeiro. E se ele me reconhece?
— Nossa, tá precisando de um corte, hein?
O ganho de volume era igual ao da decepção. O espelho desbarrancava a realidade. O danado crescia para cima. Eu, queria para baixo.
Certa vez fiquei tão, mas tão furioso com meu reflexo que, taciturnamente, baixei no fígaro. Em casa, a surpresa...
— Que isso, meu filho?
— Nada, não, mãe, deu vontade de raspar. Só isso...
Por anos a fio mantive fios rentes, comportados, adestrados e doutrinados, como a mim mesmo. É quando não se pensa mais... Vai-se.
Aposentei. Os medos continuam, mas o olhar do outro importa menos. Meus anseios ganharam voz. Posso seguir sem saber o que há depois da curva.
O espelho? Ah, esse continua obedecendo as leis da Física, mas a imagem ao fundo é mais acolhedora. Me vê sem julgamentos. De cá, estou também aprendendo a jogar o "foda-se".
Nunca tive juba tão grande. Quase um leãozinho ao Sol, Caetano que o diga. Há dúvidas ainda, mas... Por ora adotei a tiara para domar a rebeldia ou a gominha para conter o estardalhaço. Sigo contente! Seria meu fio condutor me penteando?
Assim, a vida! Quantas voltas para se (acon)chegar...
Comments