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Atualizado: 2 de jul. de 2024

Gielton



Ampulheta em tempo chuvoso



É como o sorriso. Não a gargalhada espalhafatosa que camufla a tristeza nos recônditos das vísceras. Nem tão pouco, o sorriso amarelo. Esse que, sem cor, não fede e nem cheira. Diz pouco, ou quase nada. Indifere.


Se conecta à esperança. Sincero olhar vendado adiante. Mesmo assim, capta um, entre tantos fins e recomeços. Não ilude a si e aos outros, apenas reconhece a luz por vir. Fixa o certo emaranhado à dúvida.


O tempo é seu maior aliado. Sabe disso, conta com isso. Não possui sua medida. Uma ampulheta ou o mais preciso cronômetro digital, mas sabe: tudo passa e não há tempo que algeme às intempéries.


É aceitação arredondada, sem quinas por onde escapem a realidade. Conhece seus contornos, distingue as partes e constrói seus próprios caminhos. Não se submete ou se entrega às adversidades. Sem elas, não existe.


Diz, paciência é virtude. Vive ao seu lado sem desistir. Espera o necessário sem desespero. Encontra equilíbrio entre o hoje e amanhã. Não se afoga, mesmo quando está prestes a transbordar. Respira fundo e aguarda.


Caminha de mãos dadas com o otimismo. Lado a lado encontram brechas nos muros da vida, à primeira vista, intransponíveis. Sabem juntos que derrubar a muralha do infortúnio não é boa estratégia. Então, esticam e afinam para contornar ou encontram orifícios por onde atravessam. Passam juntos para o lado de lá com resvalos, é claro


Conhece a chuva invernada de cor cinza e horizontes encurtados que umedece, mofa e angustia. A mesma que nutre, abastece de vida a terra, os rios, as fontes. Sabe do sol que arde e avermelha, torra e empoeira, mas aquece termômetros em invernos congelados.


A sabedoria lhe apetece! É parte dela.


Pode se travestir de vários nomes ou codinomes.


Assim, a vida! O que é?


<imagem gerada por AI>

 
  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Gielton



Alma fragmentada





Como de costume, partimos às cinco da manhã. Afinal, não queria estragar o relaxamento conquistado nesses dias de praia em fileiras de automóveis na chegada caótica de Belo Horizonte. Quanto antes sairmos, menores seríam as chances de desperdiçarmos a calmaria interna. Este era o cálculo subjacente ao planejamento impecável.


Nunca fui de correr. O lema sempre foi continuidade. Parar pouco, só o necessário. Atender com agilidade as necessidades e pé na estrada. Prudência era a chave da paz aos passageiros. Íamos nessa toada.


Inexplicavelmente, neste dia, havia certa tensão no ar. Algo fugidio captado por um sexto sentido. Seria o calor intenso de Governador Valadares que ficara para trás a poucos minutos? O ar no talo refrescava o ambiente, mas essa "coisa" infernal pairava sobre nós.


A reta era longa. Mesmo com a visão paralela ao asfalto que parece miragem de um tremular de vapor d'água subindo, tinha certeza que nenhum veículo vinha no sentido contrário. De fato, a pista estava livre.


A ultrapassagem àquela carreta de mais de 30 metros ia bem. Pelo retrovisor via outro carro na minha traseira cortando a tal carreta junto comigo. É certo que a velocidade não era tão baixa, mas também, não exageradamente alta. O suficiente para a realizar a manobra com segurança.


De repente, no momento em que meu capô se emparelhava com a frente da carreta, do meu lado esquerdo, um carro branco, na maior pressa, trespassava todo mundo pelo acostamento oposto. Que loucura, pensei rápido...


Na mesma rapidez do pensamento, escutei o estalar de uma pedra que, por um contato ínfimo, deixou o carro branco desgovernado. Ele cruzou a pista na nossa direção, passou voando na frente do meu parabrisa e seguiu nessa diagonal pela frente da Scania. Atravessou para o outro lado da pista sem tocar em nenhum outro veículo e, rodopiando no ar, subiu um barranco de uns dois metros de altura. Repousou sobre um platô no meio do mato com as rodas sobre o chão e a frente do veículo voltada para trás em relação à pista. Tudo muito mais rápido que se possa imaginar. Foi por pouco, muito pouco... Muito pouco, mesmo...


Mal processava essa fração de segundos quando ouvi.


— Para, pai. Para, pai.


Estacionei imediatamente. Descemos eu e meu filho para não sei o que. Não tinha planos na cabeça. Não saberia o que fazer, qualquer que fosse o caso. Tive medo de me deparar com um defunto e não dar conta das emoções. Fui assim mesmo, correndo, movido por um impulso inexplicável.


O sujeito estava preso ao cinto levemente inconsciente com algum sangue no rosto. Por mais que tente, não consigo me lembrar de sua fisionomia, mas suas palavras ecoam até hoje.


— Onde está minha arma?


Logo chegaram outras pessoas. Ouvi alguém ao telefone solicitando atendimento. Era a deixa. Saí de fininho levando a reboque um enorme sentimento de culpa.


Ainda muito confuso, liguei o carro. Seguimos perplexos, envoltos em dúvidas. Uma névoa de nebulosidade pairou sobre nós o restante do trajeto. A cena do carro voando e girando bem na minha frente orbitou a imaginação dias a fio.


Recentemente, em um encontro de família, meu filho disse: nunca mais consegui dormir em viagem depois daquele acidente.


Assim, a vida! Nos desafiando a cada esquina.


<imagem gerada por IA>

 

Gielton



Mesa pós almoço





Já haviam terminado o almoço, mas permaneciam papeando. A garrafa de cerveja, ainda cheia, compunha a mesa com os pratos vazios deixados ao lado.


Um deles lia "O tempo". Mais folheava do que se concentrava. As letras mal se sustentavam sobre o jornal que pendia a quase dobrar para baixo. Só não o fez por milagre do pouco peso. As pernas cruzadas com um dos pés sobre o joelho, como os homens costumam usar, davam o ar de machos locais, aqueles dos interiores das Minas Gerais. Nem tanto. Talvez a idade, já passada a juventude, tenha lhes tirado o vigor, mas o jeito não negava a presunção de pegadores ou metidos à besta. Sobre os óculos, a todo o tempo, o olhar se desviava para a rua, como se os poucos transeuntes fossem a notícia que mais interessava.


O papo parecia sem nexo. Entre um e outro gole de cerveja, a voz levemente arrastada e baixa, não permitia ouvir em detalhes o diálogo intercalado por grandes silêncios. Claramente era conversa para boi dormir.


De repente, ambos se viraram para a calçada. O jornal, largado sobre a mesa, enciumou-se quando a calçada ganhou atenção.


— Você viu?

— Delícia, né.

— Se desse mole, eu comia...

— Vem não, você não aguenta aquilo.

— É, não guento mesmo não, mas, olha, não sai do pensamento...


Caíram na gargalhada.


Nem desconfiaram...


Assim, a vida! Até quando esse corriqueiro impregnado?

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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