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Gielton




Corações entrelaçados


Nesse dia, não bebeu. Foi a forma que encontrou para amenizar seu mal-estar. Não lhe cabia mais estar aqui e lá ao mesmo tempo. Entre a loucura da embriaguez e a sensatez da meditação. Entre os fantasmas dos fundos dos copos de cerveja e a bondade que invadia seu coração em flashes de lucidez. Havia algo fora da ordem. Havia algo fora do lugar.


Clarisse estranhou. Moacir permaneceu introspectivo todo o dia. Como se o silêncio dos lábios fosse a magia do dia, até bastante quente para um outono já avançado. As estações do ano não são mais as mesmas. Limitou-se a picar abobrinhas e cenouras da forma como Clarisse exigia. Nenhum copo antes do almoço. O primogênito caçula até perguntou. "Não vai tomar uma cervejinha hoje, pai?" Moacir, de poucas palavras nesse dia, apenas deu de ombros.


Apesar de não transparecer tinha orgulho de seu filho, jovem e determinado. Noivo, de casamento marcado para 2021, sentia-se inseguro quanto a possibilidade ou não da realização do grande sonho. Aguardavam, ele e sua noiva, o andar da doença pelo mundo para decidirem. Moacir, a alguns meses atrás, acompanhou o casal na compra do tão desejado apartamento. Pequeno em dimensões, do tamanho das fantasias possíveis e profundo nos significados das conquistas e quimeras de uma vida a dois. Claro, financiaram, ele e Clarisse, parte do imóvel, em um bom negócio de pai para filho. A vida parecia prometer muita felicidade aos dois. Eram lindos em pessoas!


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Atualizado: 29 de nov. de 2023


Tabuleiro de xadrez com peças caidas



Naquela manhã, deitou-se sobre o piso do quarto. Escolheu um canto diferente, como se a intuição lhe alumiasse. As palmas da mão imobilizadas permaneciam relaxadas ao lado do tronco com a barriga voltada para o topo. Enquanto a respiração amainava, focava o pensamento em partes do corpo. Primeiro os pés, depois a panturrilha, subindo até os joelhos... Seguia o ritual aprendido no livro das vibrações.


De repente, um estado intermediário entre o sono e a vigília o levou para um cenário vivo e real, como se estivesse dentro de um filme no qual era o ator principal. No entanto, o script não estava pronto. Moacir definia o próprio enredo. Tinha o controle da situação. Subia uma colina acompanhado de outros homens. Cavalos, vacas, porcos e cachorros se misturavam à gente do povoado. Casebres bem modestos de telhas de palha ao pé da colina tinham em suas portas pessoas maltrapilhas e assustadas. Havia uma tensão no ar. Envolto em uma espécie de armadura que lhe pesava os braços, Moacir apontava uma ou outra choupana. Os soldados que o acompanhavam desciam para buscar mulheres. A dor espalhava-se. Os choros em forma de gritos e pedidos de clemência retumbavam. Sem dó essas famílias eram mutiladas. Mães, esposas e jovens eram arrancadas, como simples peças de um tabuleiro.


Os cabelos longos caídos sobre os ombros e o olhar, ao mesmo tempo submisso e desafiador daquela mulher em especial, chamou-lhe a atenção. Ela vestia uma túnica branca encardida e uma saia preta bem longa. Quase cobriam os pés descalços e delicados, apesar de ásperos, sinal de quem labuta a terra. Moacir a viu por um relance, suficiente para marcar sua memória.


De súbito, Moacir retorna ao mundo físico. Assustado relembra o sonho e se questiona. "Como sonhei se não estava dormindo? Foi tudo tão real. Eu, poderoso, dava ordens e causava dor. Será que..." Permaneceu absorto, ainda deitado no canto do dormitório, por algumas voltas do relógio.


Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Homem com olhos vermelhos



Voltou para casa quase flutuando. Em estado de êxtase, não por excitação, mas por um flutuar de bondade de um coração inchado de alegria, ouvia distante a canção do rádio. Ela dizia sobre a "luz do Sol que a folha traga e traduz". O caminho de volta foi como uma descida dos céus.


Junto a Clarisse, desinfetaram calmamente peça por peça, sacola a sacola. Enquanto carregavam e descarregavam compartilhou com ela sua experiência. Contou-lhe detalhes. Clarisse acolheu. Devolveu palavras de bem querer. Engrandeceu sua atitude. Sentia se de fato feliz pela transformação de seu marido. Algo de bom prenunciava.


Nesse dia, foi tomar seu primeiro copo de cerveja já bem tarde. Não resistiu e abriu uma atrás da outra, trocando o sono da tarde pela noite embriagada.


Enamorados no banho a dois, antes de dormir, Clarisse olha para Moacir assustada.


— Seus olhos estão vermelhos fumegantes.


— Como assim?


Perguntou Moacir.


— Isso. Parece algo dentro de você que não é você.


— Não compreendo.


— Estou com medo.


A noite foi perturbada. Moacir não se lembrava dos sonhos que teve. Acordou cansado, como se tivesse sido sugado por um canudinho na nuca. Havia algo de estranho acontecendo. Algo fugidio. Algo que escapava pelas brechas do pensamento.


Moacir quase explodia internamente de tanta antinomia. Não cabia em seu peito a paz que sentira no dia anterior com a expressão furiosa do olhar e o medo de Clarisse naquele banho quente e afetuoso.


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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