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Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Máscara usada na pandemia e compras de supermercado



Era dia do supermercado. De máscara no rosto e lista em mãos se dirigiu à grande venda. O trânsito livre deu-lhe a liberdade da desatenção. Conduzia no automático e o semblante não deixava dúvidas: estava fora do ar. No estacionamento uma criança, menino de uns dez anos de idade, trabalhava de flanelinha


— Posso olhar o carro, doutor.


Disse a criança.

Quase sem perceber balançou a cabeça como um sinal de sim. Estava ausente de si mas, ao mesmo tempo, conectado. Na entrada, esfrega uma mão sobre a outra com o gelado álcool em gel entre elas. Os produtos escondiam-se de seus olhos dispersos sobre as gôndolas. Passava por eles sem notar, mas riscava em suas anotações a cada item escolhido. Só se deu conta de que haviam outras pessoas circulando quando, atrapalhando o trânsito entre corredores, um cliente lhe pede licença. Moacir acorda do mundo da lua e puxa seu carrinho para o canto.


A atendente do caixa, blindada por um vidro transparente, era lenta. Moacir, que normalmente se irrita, nem notou e ensacou tudo sem pressa. A senha do cartão foi também no automático e se lhe perguntassem quanto havia pago, não saberia responder. De volta ao estacionamento abarrotado de compras reviu o garoto. Moacir fugiu do seu padrão e puxou assunto.


— Você olhou meu carro direitinho?


— Claro, doutor.


— Olha lá!


O flanelinha baixou a cabeça em sinal de submissão.


— Porque está na rua? Não sabe que existe uma doença por aí?


— Sei sim, doutor.


— Então?


— Tenho quatro irmãos mais novos e moramos com a minha mãe. No barraco de dois cômodos a geladeira está vazia. Preciso levar alguma coisa — qualquer coisa — leite, arroz, batata, o que seja.


— E o auxílio emergencial? Não está sabendo?


— Sei. Seiscentos reais, né? Minha mãe não conseguiu. Ela não tem um tal PCF. Nem sei o que é.


Como se acometido por uma compaixão maior do que jamais sentira, retirou cinquenta reais do bolso e ofereceu ao menino. Uma espécie de contentamento lhe tomou por inteiro, como se fizesse parte de um mundo que até então não percebera. Um amor fluido pelo outro, pelo mundo, pela humanidade comandou suas rédeas. Sentia-se parte de um todo maior, gigantesco. Se viu de cima como uma luz brilhante, interagindo e socorrendo outra.


O menino, em um sorriso do tamanho do mar, agradecido se virou para seguir, quando Moacir o chamou novamente. Dos três sacos de arroz amontoados no porta malas, deu-lhe um. Puxou do fundo algumas latas, embrulhou na sacolinha e entregou para o menino.


— Leve para os seus…


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Multidão onde cada ser é uma luz



A cada capítulo, novas técnicas. Dessa vez, o livro das vibrações sugeriu entrar em um elevador e escolher um andar que lhe viesse. Moacir sentiu seu corpo decolar. A porta se abriu. Entrou. Tudo acontecia como em câmera lenta, sem pressa, sem destino próprio. Desceu no sexto. Avançou. Havia um grande pomar. O verde acentuado da grama bem aparada destacava em graciosidade. Ipês amarelos brilhantes combinavam com rosas cor de rosa. O céu de um azul celeste abundante, mesmo que clareando o dia com fervor, não ofuscava sua visão. As nuvens deveriam estar do outro lado do paraíso. Nas nuvens estava mesmo era Moacir.


Um senhor grisalho se aproxima, pega sua mão e o conduz a flutuar. Sobem em direção ao céu. Devagar e suavemente. Moacir sente-se seguro e amparado. Lá de cima as coisas parecem amiúdarem-se. Os vagões enfileirados de um trem entre as encostas, comporta-se como uma cobra arrastando pelo chão. O trânsito de veículos, pequeninos em escala, desembrulham um caos organizado. Haviam pontinhos luminosos. Muitos. Em todos os lugares. Moacir não viu o rosto do mestre, mas sua voz penetrava perfeitamente seus tímpanos. Ele diz.


— Pode ver aqueles pontinhos lá embaixo?


— Vejo, sim.


Respondeu, não em forma de som, mas em ideia.


— Cada ser humano possui sua luz própria. Alguns mais, outros menos brilhantes. Estão aqui nesse mundo para aguçar seus brilhos. Torná-los cintilantes e vívidos. Contínuos e incessantes.


Moacir, perplexo, silenciou. O guia prosseguiu.


— Há apenas uma forma de alcançar essa completude.


Subitamente, perguntou


— Como?


— Através do terno amor. Da expressão da verdade que existe no âmago de cada criatura. Das mãos dadas ao acolhimento, às ajudas mútuas às desrazões de cada consciência.


Ainda em estado de choque, Moacir não soube o que dizer.


O senhor grisalho, mantendo seu tom de serenidade, dirige-se para Moacir e conclui.


— Você ainda tem muito a ajudar cada uma dessas luzes que cruzam sua vida. Deixe-se ser amado também.


Muito repentinamente Moacir retornou ao corpo. Atônito ao que acabara de suceder, manteve-se pensativo. Passou um dia mais introspectivo, em silêncio consigo. Imerso em si e aparentemente alheio ao entorno. Talvez fosse necessário digerir experiência tão vigorosa.



<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Faces da mesma moeda



Havia, no entanto, um livro. Esse fora indicado por um fisioterapeuta amigo do casal. De capa azul e linhas amarelas em forma de ondas, tratava das vibrações emanadas pelos humanos. Dizia sobre a sintonia de vibrações semelhantes, na qual, as mais altas trazem harmonia e paz. As baixas... Moacir enveredou-se por essa leitura.


Moacir passou a viver extrema contradição interna. Pela manhã deitava-se sobre o piso duro para sentir a energia em forma de vibração. Depois de um tempo em auto observação percebia todo o corpo como um único. Conectava de uma só vez a todas as células e órgãos. Atingia um estado de paz interior indescritível, tamanho o bem estar que pairava sobre si mesmo.


Voltava de sua sessão meditativa outra pessoa. Centrada, estruturada como se os alicerces da vida estivessem sobre terrenos sólidos, firmes... Clarisse encantava-lhe novamente. Seus lábios, vibrando em pequenas frases, aflorava uma paixão dos velhos tempos de mocidade. Sentia-se inteiro e integrado aos movimentos da casa. Limpava um banheiro daqui, varria uma sala acolá. Adotou a cozinha. Primeiro os pratos, depois os talheres e por fim as panelas. Tudo muito ordenado no escorredor.


Relutava em abrir a primeira lata, até ouvir o "stleche" da alça. Dali em diante era como se fosse tomado por uma força maior do que o tamanho de sua capacidade de reagir. Moacir se entregava de novo ao ócio, ao prazer da aparente fluidez que o álcool trazia. Perdia o parâmetro de bem estar e arrastava a tarde. Clarisse até o acompanhava nas primeiras, mas logo deserdava. Moacir seguia sozinho sua sina de bebedor. Havia muito prazer conjugado naquela espécie de "deixe a vida me levar, sem muito pensar".


É fato que as discussões diminuíram. As tolerâncias aumentaram. Os afetos tornaram-se objetos de cordialidade. Moacir e Clarisse amavam-se mais, apesar dos não ditos continuarem não ditos. A aposta no amor firmada na juventude estava ainda de pé, apesar da árdua construção. A casa sobre alicerces de base firme até podiam balançar, mas não tombavam. Ainda eram mais companheiros do que adversários.


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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