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Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Leão na savana



O último negócio, um imóvel na região da Pampulha, antes da pandemia, lhe rendera uma boa quantidade em espécie. O comprador, sei lá se lavava dinheiro, enviou um pacotão de notas de cem reais. Ainda deu tempo, no caixa do banco, guardar a dinheirama, antes do início da quarentena. Não imaginava o que viria pela frente.


Tudo muito novo e estranho. Na TV, as notícias eram estarrecedoras. Mortes, infectados, curvas em aclive, curvas achatadas... Os óbitos se multiplicavam pelo mundo. Ninguém sabia de nada ao certo. Como ocorria a transmissão? Haveria alguma vacina? Quais tratamentos são mais adequados? Amedrontado, o mundo pisava em terreno incógnito. Havia, no entanto, um consenso. Advertiam: fique em casa se puder. Moacir e Clarisse, em idade de risco, aquietaram-se. Junto ao filho, em família reunida, isolaram-se socialmente. Os poucos chamados telefônicos de Moacir foram dispensados. Alegava: "vamos deixar para depois da pandemia". Clarisse, funcionária pública de gabinete em repartição do estado, passou a trabalhar em casa, em demandas cada vez menores.


Os primeiros dias foram de festa. Uma espécie de férias antecipadas. Só que, ao invés das belas viagens que costumavam fazer, o que tinha era uma cervejada sem fim que começava às onze da manhã e terminava às cinco da tarde.


Em janeiro último estiveram na África do Sul. Moacir regressou com a câmera apinhada de fotos capturadas de leões, hienas, macacos e bichos e mais bichos no Kruger Park. Tudo cuidadosamente organizado por Clarisse. Nesse ponto, eles pactuam projetos comuns. As afinidades se entrelaçam e juntos já desbravaram as mais diferentes regiões do planeta. Afinal, se enamoraram em uma viagem pelo nordeste do Brasil.


Os maus humores das ressacas começaram a criar problemas. Moacir e Clarisse discutiam por coisas aparentemente bestas, reflexos de anos de não ditos, de comunicações truncadas e pensamentos acumulados. Apesar do álcool que circulava no sangue — que às vezes fervia — Moacir jamais chegou no limite do físico. As agressões eram apenas verbais. Ambos impunham as próprias verdades com veemência traduzida por palavras fortes no tom e na intensidade. "Porque você...." "Eu? Foi você que começou..."


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton


Consultório dentário



Algo apoquentava Moacir. Apesar da lógica perfeita — trabalho, sucesso, realizações — a alma clamava. A vida se repetia a cada dia. Sem novidades, sem aprendizados e envolto em uma névoa de pensamentos intestinais e ideias fracas, o planeta parecia parado. Moacir enjoara de si mesmo.


A saúde transpirava bem estar, exceto pela gengiva. Com frequência inchava e doía. Certa vez, em viagem de réveillon, se viu no dia 31 do corrente ano em uma clínica de emergência dentária. O cheiro do pus escorrendo por entre os dentes tomou a mesma proporção do alívio do sofrimento. A receita? Antibiótico por sete dias. Começou a tomar no dia seguinte para não perder a festa. Afinal, não haveria sentido contar a passagem de ano divorciado de seu copo de cerveja, seu fiel companheiro de todos os dias.


Gripava também com certa frequência. Nesses tempos reduzia a ingestão de álcool, mas não largava o caneco. Não era adepto das artesanais. Talvez, nem percebesse sabores. No entanto, incomodava lhe amargores exagerados. Preferia o lúpulo tradicional ao arroz ou milho. Raramente entregava-se por completo às gripes na qual o corpo não pode suportar seu próprio peso e a cama se apresenta como solução. Mantinha uma fraqueza, dores de cabeça e resmas perdurativas. Mas, o copo, esse não largava.


Sua companheira, cúmplice da vida há muitos carnavais, alertava:


— Moacir, você está bebendo demais. Nem quando está gripado larga essa mamadeira. Precisa se cuidar melhor.


O conciliador Moacir, concordava. Até parecia não dar a entender pois, em atitudes, continuava o mesmo. Por dentro, no entanto, refluíam pensamentos e reflexões.


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>



Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Lata e copo de cerveja sobre a mesa



Em meio à confusão armada ele ouvia uma vozinha ao pé de ouvido: "abra uma latinha mais". Obedecia em um movimento quase involuntário, mesmo que o copo estivesse ainda cheio. De lata em lata, de copo em copo, de briga em briga, venciam o dia.


O ritual da dupla ia até a refeição entardecida e uma inevitável soneca. A zoeira se misturava aos sonhos estranhos de parcas lembranças. Acontecia uma espécie de apagar desgovernado quando não se percebia o limite entre o antes e o depois. O mundo virava ao avesso e desconhecia o que era frente ou verso.


O gosto de guarda-chuva na boca ao acordar era rebatido com outras três ou quatro birras a noite. Entre filmes e telejornais, solitário permanecia. Nunca fora de botecos e preferia esse alcoolismo ordinário em sua morada.


Muitas vezes Clarisse dormia enquanto Moacir assistia a filmes de todos os estilos e qualidades na TV. Varava madrugadas afundado no sofá, ouvindo tiros, acompanhando perseguições ou decifrando tramas. Era a sua forma de deixar a mente vazia, o que, na real, não ocorria.


O domingo era ainda mais intenso. O retardar ainda maior do almoço, feito a quatro mãos, era a forma encontrada pelo casal de suprimir — pelo menos assim achavam — o tédio daquilo que antecedia a segunda-feira. Banquetes regados a uma boa dose de álcool, correndo das veias ao cérebro, davam a sensação de torpor a que se acostumara. A noite terminava com os gols do Fantástico. Tinham ambos, ainda bem, o mesmo time do coração. Eram devotos torcedores — alguns dizem sofredores — do Clube Atlético Mineiro. Era o prenúncio de mais um dia de trabalho.


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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