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Atualizado: 14 de out.

Gielton


Nó em um arame


O que te fazia sentir adulto aos sete anos?


Foi nessa idade que ingressei no grupo escolar. Via pelo retrovisor da vida a inocência do jardim de infância se afastando. Agora galgaria outros degraus. Coisa séria de gente grande. Até parece! Fora minha dificuldade com a ortografia, até que me dei bem nessa nova fase.


Não me abalei com a vastidão do Francisco Sales. Depois do saguão, uma área aberta rodeada por salas de aula dava o tom da imensidão. Pilares em alto-relevo sustentavam o telhado cujo beiral avançava para dentro do grande retângulo central. Em tempos de chuva seguia pelo corredor, fazia a curva lá na frente para ir ao banheiro. Nada que um menino esperto, com boa visão espacial, não aprendesse rapidamente.


A jardineira listrada deu lugar ao short azul-marinho. A camisa branca de botões, por dentro da bermuda, sombreava o ar de seriedade. O sapato preto e as meias da mesma cor alcançando os joelhos, compunham a aparência de retidão. Além do uniforme ultra bem passado, minha mãe penteava meu cabelo encaracolado para o lado, como se fosse possível domá-lo. Saía de casa um brinco.


A merendeira vermelha com orifício para a garrafa de suco herdei do jardim de infância. Ganhei uma maleta com alça e fecho de fivelas, além dos lápis de cor, da régua, da borracha e dos cadernos. Estes últimos, primorosamente encapados pela minha mãe. Impressionava-me sua habilidade em cortar o plástico, dobrar os cantos e colar o durex. Ficava lisinho, sem rugas, como minha pele.


Meu pai era quem me conduzia logo depois do almoço. De casa até o ponto de ônibus era um pulinho. Ele acenava. A lotação parava. Ouvia o chiado da porta traseira se abrindo. Minha perna mal alcançava o degrau. Subia segurando-me nos corrimãos. Algumas vezes passava debaixo da roleta, outras, formava um corpo único com meu pai para atravessá-la. Havia um decreto tácito: "criança não paga".


Quase sempre escolhia a janela. Mas logo me punha de pé com o rosto colado no encosto do banco da frente. Viajava na paisagem. Pessoas transitando entre lojas, algumas muito famosas, como a Mesbla e a Galeria do Ouvidor. Carros espremidos entre ônibus. Motocicletas tirando fina. Uma confusão de pedestres...


Atentava-me preferencialmente ao interior. Encantava-me o trocador. Não sei por quê, mas considerava nobre sua profissão. Nada a ver com o dinheiro que recebia. Talvez por sua visão privilegiada.


Admirava o motorista que, a cada parada, acionava o sistema de abertura das portas. Em movimentos bruscos e coordenados mexia a alavanca das marchas a todo instante. Ficava pensando, "quanto domínio!"


O volante, maior que seus braços, exigia esforço para girar. Era preciso vergar o corpo e firmar os pés para manter o veículo na curva. Tudo muito concatenado... O motorzão no meio era estupendo, apesar de barulhento.

Quando posto a funcionar, o limpador de para-brisa me hipnotizava. Ficava paralisado vendo a borracha deslizar sobre o vidro em um vai e vem lento, arrastando gotículas e desanuviando as vista. Fantástico!


Ao lado, meu pai apontava destaques pelo caminho: "Olha, essa aqui é a Amazonas". Com pouco tempo, dominei o trajeto. Descíamos no segundo ponto depois do JK. Aí, era só atravessar a rua.


Minha mãe quase matou o meu pai quando ele revelou que havia me deixado ir sozinho para a escola. "Você é doido? Ele é uma criança!" Sentia-me digno da confiança do meu pai e seguro da minha capacidade. Sabia exatamente o ponto de descer. E no mais, atravessar a rua não era problema — havia sempre um guarda garantindo a passagem dos estudantes.


Mas tinha um medo que nunca revelei. Quase pavor que me perturbava como uma turbulência em pleno voo: e se ninguém puxasse a cordinha para acionar o sinal de parada? Ela era alta — mesmo esticando ao máximo, meu braço não a alcançava.

Em pé, perto da porta, calculava quem esticaria a cordinha — um suspiro de esperança a cada rosto que mudava de lugar.


A espera parecia não ter fim até o último segundo quando alguém se levantava, segurava a cordinha e, para alívio da aflição, soava o "peeennn".

Os ombros relaxavam. A tensão se dissipava. O medo? Esse, sim, voltaria no dia seguinte junto com o arruído do amanhecer da cidade.


A vergonha, como um caracol em sua concha, jamais sairia de dentro para suplicar: “Por favor, você poderia dar o sinal para mim?” Quantas vezes ensaiei… Quantas vezes estive à beira de pronunciar… Era como se um nó na garganta travasse a voz.


Tive a sorte de ter um anjo da guarda de plantão sempre cuidando de mim. Ele nunca faltou!


Assim, a vida. Crescemos, mesmo sem saber.

 

Atualizado: 18 de set.

Gielton


Bicicleta Monareta antiga


Arthur Souza Matos, dele, lembro nome e sobrenome. Fomos colegas desde o grupo escolar até o 2º grau. Morava no Prado, bairro vizinho — mais chique, mais longe da favela, mais elitizado. Ficava do outro lado da Av. Amazonas.

No início, meu pai me conduzia, mas, em pouco tempo, ganhei autorização para caminhar sozinho. Feito uma criança boba, pisoteava folhas caídas, chutava castanhas — absorto, como se o tempo fosse desnecessário.


Nessa época, Arthur já possuía sua bicicleta. Apesar de toda generosidade, tinha inveja da sua magrela. Foi nela que aprendi a me equilibrar em duas rodas. Poucos devem ter sido os tombos, pois deles me esqueci. No entanto, a fissura pela bike é viva ainda hoje em meus afetos.

Ainda me pergunto, o que tanto me atraía? Talvez a magia do equilíbrio precário. Ou a sensação de liberdade pelo vento no peito. Só sei que o desejo de ter a própria bicicleta crescia a cada dia.


Nunca passei fome, mas na minha casa, tudo era muito regrado. Sonhar com minha própria bike era um despropósito absoluto. Chances mínimas, pois dezenas de prioridades ocupavam o topo da lista.



Há lembranças que, como pedras no leito do rio, resistem ao fluxo do tempo.

Estava na casa dos Cainãna. Era um fim de tarde, véspera de Natal. Brincávamos de... nem sei o quê. Provavelmente, forte apache! De repente, me convocaram por cima do muro.


— Ô, Gielton! Mamãe tá te chamando!


Subi as escadas “num pau só”, tamanha a raiva que senti. Que saco! Já estou de férias. Só falta minha mãe mandar catar matinhos na horta.


Adentrei o alpendre esbravejando.


— O que foi? Precisava gritar desse jeito?


A voz foi amolecendo. A cara de bravo deu lugar à expressão de surpresa, com um leve suspender de sobrancelhas. De repente, os passos passaram ao modo câmera lenta. Fui entendendo devagar, ficha caindo, olhos marejando até que...


Lá estava ela. Uma Monareta dobrável, verde-claro e novinha em folha. As rodas pequenas combinavam com o quadro ultramoderno. Ela brilhava tanto quanto meus olhos. Olhos castanhos que se esverdearam com o reflexo de sua pigmentação.

O queixo caiu. O coração disparou. Perplexidade. Algo indescritível — um zumbido ao longe — me tirou do ar. Tinha uns treze anos e confesso: foi o melhor presente da minha infância.


Reunidos em torno da bicicleta vieram as regras e restrições. Primeiro, a bicicleta não era minha, era nossa, dos três irmãos que teriam direitos iguais. Segundo, andar só na nossa rua. Terceiro, quarto... Já nem ouvia mais.


Peguei a bichinha e dei a primeira volta. Desci e subi a rua exibindo toda a minha destreza com a máquina. Foi paixão à primeira pedalada. Felicidade é pouco para medir a largura da emoção.


No início tive mesmo que dividi-la com os irmãos, mas passada a euforia inicial, a assumi como minha, tanto no tempo que permanecia montado, quanto nos cuidados. Aprendi a desmontar e montar todas as suas peças: ajustar o freio de borrachinhas, engraxar as esferas das rodas… Torcia, encaixava, apertava e desapertava parafusos como um mecânico de verdade.


Foram anos de peripécias em cima dela. Tornamo-nos amigos inseparáveis. Com ela, extrapolei limites de velocidade e explorei horizontes geográficos proibidos. Um dia, escapuli de casa e, com alguns amigos, fui baixar em Betim. A bronca foi do tamanho da viagem.


Meu corpo cresceu, as pernas ficaram longas para aquelas rodinhas e os desejos foram mudando de lugar. Agora, o coração palpitava por outras formas de amar.

A Monareta foi mais do que uma bicicleta. Foi meu passaporte para o vento. Não sei onde foi parar, em qual ferro velho foi enterrada, mas sei que ainda pedalo em suas lembranças.


Assim, a vida. Feita de vento, rodas e memórias.

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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