PASSAPORTE PARA O VENTO
- Gielton

- 27 de jun. de 2019
- 3 min de leitura
Atualizado: 18 de set.
Gielton

Arthur Souza Matos, dele, lembro nome e sobrenome. Fomos colegas desde o grupo escolar até o 2º grau. Morava no Prado, bairro vizinho — mais chique, mais longe da favela, mais elitizado. Ficava do outro lado da Av. Amazonas.
No início, meu pai me conduzia, mas, em pouco tempo, ganhei autorização para caminhar sozinho. Feito uma criança boba, pisoteava folhas caídas, chutava castanhas — absorto, como se o tempo fosse desnecessário.
Nessa época, Arthur já possuía sua bicicleta. Apesar de toda generosidade, tinha inveja da sua magrela. Foi nela que aprendi a me equilibrar em duas rodas. Poucos devem ter sido os tombos, pois deles me esqueci. No entanto, a fissura pela bike é viva ainda hoje em meus afetos.
Ainda me pergunto, o que tanto me atraía? Talvez a magia do equilíbrio precário. Ou a sensação de liberdade pelo vento no peito. Só sei que o desejo de ter a própria bicicleta crescia a cada dia.
Nunca passei fome, mas na minha casa, tudo era muito regrado. Sonhar com minha própria bike era um despropósito absoluto. Chances mínimas, pois dezenas de prioridades ocupavam o topo da lista.
Há lembranças que, como pedras no leito do rio, resistem ao fluxo do tempo.
Estava na casa dos Cainãna. Era um fim de tarde, véspera de Natal. Brincávamos de... nem sei o quê. Provavelmente, forte apache! De repente, me convocaram por cima do muro.
— Ô, Gielton! Mamãe tá te chamando!
Subi as escadas “num pau só”, tamanha a raiva que senti. Que saco! Já estou de férias. Só falta minha mãe mandar catar matinhos na horta.
Adentrei o alpendre esbravejando.
— O que foi? Precisava gritar desse jeito?
A voz foi amolecendo. A cara de bravo deu lugar à expressão de surpresa, com um leve suspender de sobrancelhas. De repente, os passos passaram ao modo câmera lenta. Fui entendendo devagar, ficha caindo, olhos marejando até que...
Lá estava ela. Uma Monareta dobrável, verde-claro e novinha em folha. As rodas pequenas combinavam com o quadro ultramoderno. Ela brilhava tanto quanto meus olhos. Olhos castanhos que se esverdearam com o reflexo de sua pigmentação.
O queixo caiu. O coração disparou. Perplexidade. Algo indescritível — um zumbido ao longe — me tirou do ar. Tinha uns treze anos e confesso: foi o melhor presente da minha infância.
Reunidos em torno da bicicleta vieram as regras e restrições. Primeiro, a bicicleta não era minha, era nossa, dos três irmãos que teriam direitos iguais. Segundo, andar só na nossa rua. Terceiro, quarto... Já nem ouvia mais.
Peguei a bichinha e dei a primeira volta. Desci e subi a rua exibindo toda a minha destreza com a máquina. Foi paixão à primeira pedalada. Felicidade é pouco para medir a largura da emoção.
No início tive mesmo que dividi-la com os irmãos, mas passada a euforia inicial, a assumi como minha, tanto no tempo que permanecia montado, quanto nos cuidados. Aprendi a desmontar e montar todas as suas peças: ajustar o freio de borrachinhas, engraxar as esferas das rodas… Torcia, encaixava, apertava e desapertava parafusos como um mecânico de verdade.
Foram anos de peripécias em cima dela. Tornamo-nos amigos inseparáveis. Com ela, extrapolei limites de velocidade e explorei horizontes geográficos proibidos. Um dia, escapuli de casa e, com alguns amigos, fui baixar em Betim. A bronca foi do tamanho da viagem.
Meu corpo cresceu, as pernas ficaram longas para aquelas rodinhas e os desejos foram mudando de lugar. Agora, o coração palpitava por outras formas de amar.
A Monareta foi mais do que uma bicicleta. Foi meu passaporte para o vento. Não sei onde foi parar, em qual ferro velho foi enterrada, mas sei que ainda pedalo em suas lembranças.
Assim, a vida. Feita de vento, rodas e memórias.



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