O PRESENTE
- Gielton
- 27 de jun. de 2019
- 3 min de leitura
Gielton

Arthur Souza Matos, dele, lembro nome e sobrenome. Fomos colegas desde o grupo escolar até o 2º grau. Morava no Prado, bairro vizinho. Mais chique, mais longe da favela, mais elitizado. Ficava do outro lado da Amazonas. No início, meu pai me conduzia, mas, em pouco tempo, ganhei autorização. Caminhava sozinho com uma criança boba pelas ruas do bairro.
Com meus onze anos Arthur já tinha sua bicicleta. Foi nela que aprendi a pilotar. Poucos devem ter sido os tombos pois, deles, me esqueci. Mas, me lembro bem da fissura pela bike. Às vezes, roía as unhas até o bagaço tamanha a ansiedade em passar mais uma tarde com o Arthur. Não sei ao certo, talvez a magia do equilíbrio precário tenha me atraído. Ou, quem sabe, a sensação de liberdade sobre as duas rodas tenha sido o ponto de sintonia entre nós? Só sei que o desejo de ter a própria bicicleta crescia.
Nunca passei fome mas, na minha casa, tudo era muito regrado. Pedir uma bicicleta de presente era algo quase que despropositado. Chances mínimas, pois dezenas de prioridades ocupavam a frente. Assim, passaram-se meses, talvez anos de visitas frequentes à casa do amigo.
Certas coisas a gente nunca esquece.
Estava na casa dos Cainãna. Era um fim de tarde, véspera de Natal. Brincávamos de... nem sei o quê. Talvez, "forte apache"! De repente me convocaram lá de cima do muro.
- Ô Gielton, mamãe tá te chamando!
Subi as escadas num pau só, tamanha a raiva que senti. Que saco, já estou de férias. Só falta minha mãe mandar catar matinhos na horta.
Entrei alpendre adentro esbravejando.
- O que foi? Precisava gritar desse jeito?
A voz foi amolecendo. A cara de bravo foi dando lugar à expressão de surpresa com um leve suspender de sobrancelhas. De repente, os passos passaram ao modo câmera lenta. Fui entendendo devagar, ficha caindo sem pressa, até...
Lá estava ela. Uma monareta dobrável, verde claro, com guidom regulável, novinha em folha. Rodas pequenas e quadro ultra-moderno. Freio a "borrachinha" que raspa no aro. Selim ajustável. Veio, inclusive, com um pequeno bagageiro.
Ela brilhava tanto quanto meus olhos. Olhos castanhos que se esverdearam com o reflexo de sua pigmentação. O queixo caiu. O coração disparou. Perplexidade! Algo de indescritível, como um zumbido longe, longe me tirando do ar. Tinha uns treze anos e confesso: foi uma das melhores surpresas da minha vida.
Minha família se reuniu em torno da bicicleta e depois de acalmada a excitação pelo inesperado, vieram as regras e restrições. Primeiro, a bicicleta não era minha, era nossa, dos três irmãos que teriam direitos iguais. Segundo, andar só na nossa rua. Terceiro, quarto... Já nem ouvia mais.
Peguei a bichinha e logo dei a minha primeira voltinha. Desci e subi a rua mostrando toda a minha destreza com a máquina. Foi paixão à primeira pedalada. Felicidade é pouco para descrever a emoção daquele momento.
No início tive mesmo que dividi-la com os irmãos, mas passada a euforia inicial, assumi como minha, tanto no tempo que permanecia montado, quanto nos cuidados. Aprendi a desmontar e montar todas as suas peças, como um mecânico que torce, encaixa, aperta e desaperta parafusos com chaves de fenda e alicates.
Foram anos de peripécias em cima dela. Tornamo-nos amigos inseparáveis. Ultrapassei limites de velocidade. Ultrapassei limites geográficos. Um dia, escapuli de casa, e com alguns amigos, fui baixar em Betim. A bronca foi do tamanho da viagem.
Não me lembro de quando e por que a abandonei. Nem mesmo para onde foi. Ingratidão?
Assim, a vida. Da forma como chegam, bicicletas e pessoas se vão.
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