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Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Homem com olhos vermelhos



Voltou para casa quase flutuando. Em estado de êxtase, não por excitação, mas por um flutuar de bondade de um coração inchado de alegria, ouvia distante a canção do rádio. Ela dizia sobre a "luz do Sol que a folha traga e traduz". O caminho de volta foi como uma descida dos céus.


Junto a Clarisse, desinfetaram calmamente peça por peça, sacola a sacola. Enquanto carregavam e descarregavam compartilhou com ela sua experiência. Contou-lhe detalhes. Clarisse acolheu. Devolveu palavras de bem querer. Engrandeceu sua atitude. Sentia se de fato feliz pela transformação de seu marido. Algo de bom prenunciava.


Nesse dia, foi tomar seu primeiro copo de cerveja já bem tarde. Não resistiu e abriu uma atrás da outra, trocando o sono da tarde pela noite embriagada.


Enamorados no banho a dois, antes de dormir, Clarisse olha para Moacir assustada.


— Seus olhos estão vermelhos fumegantes.


— Como assim?


Perguntou Moacir.


— Isso. Parece algo dentro de você que não é você.


— Não compreendo.


— Estou com medo.


A noite foi perturbada. Moacir não se lembrava dos sonhos que teve. Acordou cansado, como se tivesse sido sugado por um canudinho na nuca. Havia algo de estranho acontecendo. Algo fugidio. Algo que escapava pelas brechas do pensamento.


Moacir quase explodia internamente de tanta antinomia. Não cabia em seu peito a paz que sentira no dia anterior com a expressão furiosa do olhar e o medo de Clarisse naquele banho quente e afetuoso.


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Máscara usada na pandemia e compras de supermercado



Era dia do supermercado. De máscara no rosto e lista em mãos se dirigiu à grande venda. O trânsito livre deu-lhe a liberdade da desatenção. Conduzia no automático e o semblante não deixava dúvidas: estava fora do ar. No estacionamento uma criança, menino de uns dez anos de idade, trabalhava de flanelinha


— Posso olhar o carro, doutor.


Disse a criança.

Quase sem perceber balançou a cabeça como um sinal de sim. Estava ausente de si mas, ao mesmo tempo, conectado. Na entrada, esfrega uma mão sobre a outra com o gelado álcool em gel entre elas. Os produtos escondiam-se de seus olhos dispersos sobre as gôndolas. Passava por eles sem notar, mas riscava em suas anotações a cada item escolhido. Só se deu conta de que haviam outras pessoas circulando quando, atrapalhando o trânsito entre corredores, um cliente lhe pede licença. Moacir acorda do mundo da lua e puxa seu carrinho para o canto.


A atendente do caixa, blindada por um vidro transparente, era lenta. Moacir, que normalmente se irrita, nem notou e ensacou tudo sem pressa. A senha do cartão foi também no automático e se lhe perguntassem quanto havia pago, não saberia responder. De volta ao estacionamento abarrotado de compras reviu o garoto. Moacir fugiu do seu padrão e puxou assunto.


— Você olhou meu carro direitinho?


— Claro, doutor.


— Olha lá!


O flanelinha baixou a cabeça em sinal de submissão.


— Porque está na rua? Não sabe que existe uma doença por aí?


— Sei sim, doutor.


— Então?


— Tenho quatro irmãos mais novos e moramos com a minha mãe. No barraco de dois cômodos a geladeira está vazia. Preciso levar alguma coisa — qualquer coisa — leite, arroz, batata, o que seja.


— E o auxílio emergencial? Não está sabendo?


— Sei. Seiscentos reais, né? Minha mãe não conseguiu. Ela não tem um tal PCF. Nem sei o que é.


Como se acometido por uma compaixão maior do que jamais sentira, retirou cinquenta reais do bolso e ofereceu ao menino. Uma espécie de contentamento lhe tomou por inteiro, como se fizesse parte de um mundo que até então não percebera. Um amor fluido pelo outro, pelo mundo, pela humanidade comandou suas rédeas. Sentia-se parte de um todo maior, gigantesco. Se viu de cima como uma luz brilhante, interagindo e socorrendo outra.


O menino, em um sorriso do tamanho do mar, agradecido se virou para seguir, quando Moacir o chamou novamente. Dos três sacos de arroz amontoados no porta malas, deu-lhe um. Puxou do fundo algumas latas, embrulhou na sacolinha e entregou para o menino.


— Leve para os seus…


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Multidão onde cada ser é uma luz



A cada capítulo, novas técnicas. Dessa vez, o livro das vibrações sugeriu entrar em um elevador e escolher um andar que lhe viesse. Moacir sentiu seu corpo decolar. A porta se abriu. Entrou. Tudo acontecia como em câmera lenta, sem pressa, sem destino próprio. Desceu no sexto. Avançou. Havia um grande pomar. O verde acentuado da grama bem aparada destacava em graciosidade. Ipês amarelos brilhantes combinavam com rosas cor de rosa. O céu de um azul celeste abundante, mesmo que clareando o dia com fervor, não ofuscava sua visão. As nuvens deveriam estar do outro lado do paraíso. Nas nuvens estava mesmo era Moacir.


Um senhor grisalho se aproxima, pega sua mão e o conduz a flutuar. Sobem em direção ao céu. Devagar e suavemente. Moacir sente-se seguro e amparado. Lá de cima as coisas parecem amiúdarem-se. Os vagões enfileirados de um trem entre as encostas, comporta-se como uma cobra arrastando pelo chão. O trânsito de veículos, pequeninos em escala, desembrulham um caos organizado. Haviam pontinhos luminosos. Muitos. Em todos os lugares. Moacir não viu o rosto do mestre, mas sua voz penetrava perfeitamente seus tímpanos. Ele diz.


— Pode ver aqueles pontinhos lá embaixo?


— Vejo, sim.


Respondeu, não em forma de som, mas em ideia.


— Cada ser humano possui sua luz própria. Alguns mais, outros menos brilhantes. Estão aqui nesse mundo para aguçar seus brilhos. Torná-los cintilantes e vívidos. Contínuos e incessantes.


Moacir, perplexo, silenciou. O guia prosseguiu.


— Há apenas uma forma de alcançar essa completude.


Subitamente, perguntou


— Como?


— Através do terno amor. Da expressão da verdade que existe no âmago de cada criatura. Das mãos dadas ao acolhimento, às ajudas mútuas às desrazões de cada consciência.


Ainda em estado de choque, Moacir não soube o que dizer.


O senhor grisalho, mantendo seu tom de serenidade, dirige-se para Moacir e conclui.


— Você ainda tem muito a ajudar cada uma dessas luzes que cruzam sua vida. Deixe-se ser amado também.


Muito repentinamente Moacir retornou ao corpo. Atônito ao que acabara de suceder, manteve-se pensativo. Passou um dia mais introspectivo, em silêncio consigo. Imerso em si e aparentemente alheio ao entorno. Talvez fosse necessário digerir experiência tão vigorosa.



<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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