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Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Faces da mesma moeda



Havia, no entanto, um livro. Esse fora indicado por um fisioterapeuta amigo do casal. De capa azul e linhas amarelas em forma de ondas, tratava das vibrações emanadas pelos humanos. Dizia sobre a sintonia de vibrações semelhantes, na qual, as mais altas trazem harmonia e paz. As baixas... Moacir enveredou-se por essa leitura.


Moacir passou a viver extrema contradição interna. Pela manhã deitava-se sobre o piso duro para sentir a energia em forma de vibração. Depois de um tempo em auto observação percebia todo o corpo como um único. Conectava de uma só vez a todas as células e órgãos. Atingia um estado de paz interior indescritível, tamanho o bem estar que pairava sobre si mesmo.


Voltava de sua sessão meditativa outra pessoa. Centrada, estruturada como se os alicerces da vida estivessem sobre terrenos sólidos, firmes... Clarisse encantava-lhe novamente. Seus lábios, vibrando em pequenas frases, aflorava uma paixão dos velhos tempos de mocidade. Sentia-se inteiro e integrado aos movimentos da casa. Limpava um banheiro daqui, varria uma sala acolá. Adotou a cozinha. Primeiro os pratos, depois os talheres e por fim as panelas. Tudo muito ordenado no escorredor.


Relutava em abrir a primeira lata, até ouvir o "stleche" da alça. Dali em diante era como se fosse tomado por uma força maior do que o tamanho de sua capacidade de reagir. Moacir se entregava de novo ao ócio, ao prazer da aparente fluidez que o álcool trazia. Perdia o parâmetro de bem estar e arrastava a tarde. Clarisse até o acompanhava nas primeiras, mas logo deserdava. Moacir seguia sozinho sua sina de bebedor. Havia muito prazer conjugado naquela espécie de "deixe a vida me levar, sem muito pensar".


É fato que as discussões diminuíram. As tolerâncias aumentaram. Os afetos tornaram-se objetos de cordialidade. Moacir e Clarisse amavam-se mais, apesar dos não ditos continuarem não ditos. A aposta no amor firmada na juventude estava ainda de pé, apesar da árdua construção. A casa sobre alicerces de base firme até podiam balançar, mas não tombavam. Ainda eram mais companheiros do que adversários.


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton



Leão na savana



O último negócio, um imóvel na região da Pampulha, antes da pandemia, lhe rendera uma boa quantidade em espécie. O comprador, sei lá se lavava dinheiro, enviou um pacotão de notas de cem reais. Ainda deu tempo, no caixa do banco, guardar a dinheirama, antes do início da quarentena. Não imaginava o que viria pela frente.


Tudo muito novo e estranho. Na TV, as notícias eram estarrecedoras. Mortes, infectados, curvas em aclive, curvas achatadas... Os óbitos se multiplicavam pelo mundo. Ninguém sabia de nada ao certo. Como ocorria a transmissão? Haveria alguma vacina? Quais tratamentos são mais adequados? Amedrontado, o mundo pisava em terreno incógnito. Havia, no entanto, um consenso. Advertiam: fique em casa se puder. Moacir e Clarisse, em idade de risco, aquietaram-se. Junto ao filho, em família reunida, isolaram-se socialmente. Os poucos chamados telefônicos de Moacir foram dispensados. Alegava: "vamos deixar para depois da pandemia". Clarisse, funcionária pública de gabinete em repartição do estado, passou a trabalhar em casa, em demandas cada vez menores.


Os primeiros dias foram de festa. Uma espécie de férias antecipadas. Só que, ao invés das belas viagens que costumavam fazer, o que tinha era uma cervejada sem fim que começava às onze da manhã e terminava às cinco da tarde.


Em janeiro último estiveram na África do Sul. Moacir regressou com a câmera apinhada de fotos capturadas de leões, hienas, macacos e bichos e mais bichos no Kruger Park. Tudo cuidadosamente organizado por Clarisse. Nesse ponto, eles pactuam projetos comuns. As afinidades se entrelaçam e juntos já desbravaram as mais diferentes regiões do planeta. Afinal, se enamoraram em uma viagem pelo nordeste do Brasil.


Os maus humores das ressacas começaram a criar problemas. Moacir e Clarisse discutiam por coisas aparentemente bestas, reflexos de anos de não ditos, de comunicações truncadas e pensamentos acumulados. Apesar do álcool que circulava no sangue — que às vezes fervia — Moacir jamais chegou no limite do físico. As agressões eram apenas verbais. Ambos impunham as próprias verdades com veemência traduzida por palavras fortes no tom e na intensidade. "Porque você...." "Eu? Foi você que começou..."


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>

Atualizado: 29 de nov. de 2023

Gielton


Consultório dentário



Algo apoquentava Moacir. Apesar da lógica perfeita — trabalho, sucesso, realizações — a alma clamava. A vida se repetia a cada dia. Sem novidades, sem aprendizados e envolto em uma névoa de pensamentos intestinais e ideias fracas, o planeta parecia parado. Moacir enjoara de si mesmo.


A saúde transpirava bem estar, exceto pela gengiva. Com frequência inchava e doía. Certa vez, em viagem de réveillon, se viu no dia 31 do corrente ano em uma clínica de emergência dentária. O cheiro do pus escorrendo por entre os dentes tomou a mesma proporção do alívio do sofrimento. A receita? Antibiótico por sete dias. Começou a tomar no dia seguinte para não perder a festa. Afinal, não haveria sentido contar a passagem de ano divorciado de seu copo de cerveja, seu fiel companheiro de todos os dias.


Gripava também com certa frequência. Nesses tempos reduzia a ingestão de álcool, mas não largava o caneco. Não era adepto das artesanais. Talvez, nem percebesse sabores. No entanto, incomodava lhe amargores exagerados. Preferia o lúpulo tradicional ao arroz ou milho. Raramente entregava-se por completo às gripes na qual o corpo não pode suportar seu próprio peso e a cama se apresenta como solução. Mantinha uma fraqueza, dores de cabeça e resmas perdurativas. Mas, o copo, esse não largava.


Sua companheira, cúmplice da vida há muitos carnavais, alertava:


— Moacir, você está bebendo demais. Nem quando está gripado larga essa mamadeira. Precisa se cuidar melhor.


O conciliador Moacir, concordava. Até parecia não dar a entender pois, em atitudes, continuava o mesmo. Por dentro, no entanto, refluíam pensamentos e reflexões.


<Imagem gerada por Inteligência Artificial>



Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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