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Gielton



A criança refletida no adulto



Posso abrir meu coração?


Tenho um amigo que usa essa expressão quando deseja se confessar. Depois, solta o verbo a falar de si.


Gosto de aprender com os outros. A tal pergunta afirmativa me cai bem. Tenho muito a revelar. Tantas coisas, que nem sei por onde irromper.


Filhos são espelhos para nos mirar. Tenho na memória que desde muito pequenos refletiam em mim suas angústias, alegrias e dificuldades em lidar com os sentimentos. Pirraçavam para dizer aquilo que ainda não eram capazes. "Euzinho", puro!


Depois de uma manhã intensa, com novidades atrás de novidades, experiências preenchidas e amores vividos, o cansaço bate à porta. Como a gente, as crianças não querem interromper a brincadeira, o gozo, o prazer. É como se perpetuar trouxesse o futuro para o agora, ou atrasasse o passado.


Nós, adultos, disfarçamos. Criamos subterfúgios. Inventamos desculpas esfarrapadas. Elas, crianças em plena intensidade, explicitam. Esfregam os olhos. Coçam os ouvidos... O bocejo inevitável expressa naturalmente o que virá: hora de dormir.


"Não quero"... falam pelo olhar. A resistência é nítida. "Quero continuar a brincadeira, mesmo que meu corpo peça paz". Se passa da hora, relaxar e acalmar a ansiedade para descansar, torna-se tormento. A briga interna é límpida. "Não aguento mais, mas não dou o braço a torcer". Exatamente como nós. Quem debaixo das cobertas já não sentiu o borbulhar mental como um escudo para o sono?


Vi meus filhos bem pequenos nesses dilemas. O ritmo da dormida do final da manhã exigia intervenção para um transcorrer do dia mais fluido.


Primeiro tentava com canções calmas, típicas de ninar. Falava baixo em tom sereno e trazia a energia da paz para o quarto. O colo oferecido, algumas vezes no mais alto grau da entrega, era insuficiente. Via a agitação interna digladiando com a exaustão.


Sabem o que eu fazia algumas vezes nessas horas? Posso abrir meu coração?


Deitava a criança no colo de olhos para cima impondo um pouco de força. Pressionava contra o peito e saía para o quintal. A claridade azul do céu tornava-se insuportável. Os olhos cerravam-se instintivamente. "Uma bonequinha preta" era a canção que invadia os ouvidos, acompanhada de um balançar sutil e suave. Ia nessa toada. Rapidamente o sono vencia.


Adormeciam como anjos!


Assim, a vida! Linhas tênues separam a luz do escuro.

Gielton





Poderia ser apenas mais uma viagem. Só que essa tinha um "quê" de especial: comemorávamos 25 anos juntos e três filhos na bagagem. Foram 36 dias grudados, os cinco. Entre espinhos e flores, sobrou amor construído e partilhado.


Já estávamos na Argentina. O próximo passo? Cruzar a Cordilheira dos Andes em direção a Santiago.


Inenarrável a cordilheira. Sua monstruosidade assusta. Como é possível tamanha magnitude? As rochas em degradê do amarelo ao vermelho invadem a retina e nos deixa estupefatos. A cada curva da Ruta 7 a realidade dos seixos deixa nossa imaginação sem espaço para criar. De tão inusitado o queixo cai, as narinas se abrem e o coração apreensivo enxerga o divino expresso em forma de natureza. As inclinações quase em linha vertical são "incapitavéis" por instrumentos óticos que vão além dos olhos. Só mesmo de perto para, diante de nossa pequenez, acessarmos algo tão grandioso.


No meio do caminho estava Portillo. Seria apenas uma parada para o almoço. O bom da viagem é o inusitado!


Em Portillo há uma estação de esqui. No verão a brancura da neve escorre apenas pelos picos mais altos. As escarpas nos vales desfrutavam do Sol arrasador. Não esquiamos, mas...


— Gente, o teleférico da estação está funcionando para visitação. Topam!


Chegou a primogênita numa animação só!


Os carrinhos do teleférico eram como pontinhos pretos deslizando sobre o cabo de aço lá no alto do morro. Praticamente invisíveis. Pensei: será?


Todo mundo topou de cara!


Não sabia exatamente o que sentia! Medo? Talvez!


A terra vista através dos pezinhos pendurados e balançantes ficava cada vez mais miúda. O pensamento "estraga prazer" começou a preencher a mente. E se esse cabo se rompe? Já era. O raciocínio tentava controlar. Não, isso não vai acontecer.


E quando a rodilha sobre o cabo tinha que passar nas emendas dos postes? Ai meu Deus, vai soltar. Aí apertava com força a grade de proteção. Como se isso pudesse me salvar.


Não vou olhar mais para baixo. Pode ajudar a conter o pânico. Só que, para frente estava a montanha. O choque seria certo se o cabo de aço não subisse quase verticalmente rente ao paredão. Ai, ai, ai... Quando chegar nessa parte vou tombar para trás... Tá chegando.... Nem vi. Fechei os olhos e quando abri já estava na plataforma de desembarque.


O pensamento já estava focado na volta! Andei prá lá e prá cá, sentindo a altura. O medo da volta foi me tomando.


— ¿Hay alguna manera de bajar a pie?


Perguntei ao primeiro funcionário com meu parco portunhol.


Sem chances! O coração já pulava e o pavor já tomava conta de meu corpo e minha alma. Não sabia o que fazer. Estava em uma enrrascada. Só pensava na inclinação da volta, que seria para baixo. A queda seria o fim, que estava próximo a acontecer. Só aí consegui expressar meu pânico para os filhos em busca de algum apoio. Queria, na verdade, morar no alto daquela montanha para sempre.


Minha mulher acolheu e disse:


— Estarei com você na descida!


Entramos no bondinho de volta. Fui tão apressado que bati o ferro na canela dela. Tadinha! Segurei com toda minha força sua mão, apertei com a outra a grade, fechei os olhos e gritei para dentro:


— Socorro! Socorro.


Só ouvia o deslizar da roldana e sentia o balançar do bondinho! Foram os dez minutos mais lentos da minha vida!


Abri os olhos a poucos metros do chão. Aliviado e bambo desci na estação desnorteado. Dali, fui direto ao banheiro!


Virei chacota o resto da viagem!


Assim, a vida! Trazemos medos de outras existências?


Imagem do post criado com AI <https://l1nk.dev/p2nCt>

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Gielton






Você já foi a Marrakesch? Caetano, seu danado, me confundiu todo! Achei que só havia "prá lá de Marrakesch".


Não é que existe de verdade e estivemos lá!? Fica no Marrocos, um país norte africano banhado pelo Mediterrâneo, bem em frente a Espanha. Uma aventura que nem te conto.


Descemos da grande balsa em Tânger e logo fomos cooptados por um daqueles guias que intencionam intencionalmente nos extorquir. Extorquiu, mas nos conduziu...


Tudo muito novo, muito diferente. A começar pelo idioma. Falam árabe, na sua grande maioria, mas também se comunicam em francês. Os dois "bocoiós" das Minas Gerais enrolam suas línguas em um simples "merci" ou "shkran".


E para encontrar a tal pousada indicada pelo sujeito que conhecemos no trem? Apresentamos o cartãozinho a um grupo de homens à beira de um café na grande praça. Pareciam à toa! Entreolharam-se com ar de mistério. Disseram algo em árabe ininteligível, como se confabulassem uma tramoia e indicaram uma criança para nos guiar.


O medo deixou a mochila ainda mais pesada. Pensamentos ruins orbitaram, ainda mais quando nos embrenhamos em becos e mais becos labirínticos cruzando motos, bicicletas e carrinhos de mão. Entra aqui, sai ali, volta por cá... Perdidos, nos encontramos quando a portinhola se abriu e fomos recebidos pelo rapaz do trem, dono da pousada. Alívio...


Acomodados. Hora de explorar um pouco o entorno. A Praça Jemaa El-Fna, a principal e maior da cidade, estava ali, entre uma ruela e outra, bem pertinho da gente. Fácil de se perder no meio de lojinhas e mais lojinhas, todas marrom terra claro, a cor predominante das construções. Xales coloridos escorrem pelas portas, vitrines com tagines amontoados puxam a atenção, prataria de todos os preços imploram pela compra.


Caminhei marcando território visualmente. Fotografei mentalmente cada esquina e gravei o mapa dentro da minha bússola. Enquanto isso, minha companheira seguia leve, solta e deslumbrada.


Interpelei-a no entre passos:


— Vamos apenas explorar, conhecer e fazer o primeiro contato. Mineiramente como manda o figurino. Tudo bem?


Balançou afirmativamente a cabeça. Seguimos.


A praça é um deslumbre. Enorme. O calçadão ao ar livre, plano e circular, convida a vaguear lentamente entre os inúmeros ambulantes. Nos oferecem desde água a relógios, tatuagens a haxixe, tapetes a calçados, chás e comidas típicas. Tudo junto e misturado em um tipo de organização estranha aos nossos hábitos.


De repente, uma cobra começa a levantar do cesto. Mal a cabecinha emergiu, a máquina (na época as câmeras ainda não estavam nos celulares) já estava nas mãos dela. E clica daqui. Busca um novo ângulo, dá um zoom, pois chegar perto? Nem pensar...


Assistia a cena meio de menesguei quando o encantador me puxa para o centro e enrola a cobra em meu pescoço. Tudo muito rápido. Virei uma "múmia paralítica" no sentido mais literal do termo. Só não desfaleci em praça pública por que o pânico me conteve. Enquanto isso, não sei como, ouvia os cliques em um disparo frenético. Permaneci atônito enquanto o mundo girava em volta da serpente grande e grossa.


Passado o susto veio a cobrança.


— Cinquenta euros? Nem pensar.


Ela dizia invocada como se estivesse no Rio de Janeiro. Dona de si e do "pedaço", em portunhol, e apontando para a câmera continuou.


— Eu apago todas as fotos agora.


Em árabe ele retrucava.


يمكننا تقديم خصم. كم يدفعون؟ —


Não conseguia entender os xingamentos de ambos os lados. A valentia e coragem dela me deixaram perplexo. Pensei: vamos ser presos.


Entendemos depois que são negociantes por natureza. Pechinchar faz parte. Deixamos 5 euros pelas fotos!


— Tá vendo! Não falei que era só para explorarmos discretamente?


Pensou: han, han..


Assim, a vida. Repentinamente nos surpreende.


Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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