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HOMEM SÓ

  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton
  • 17 de dez. de 2020
  • 3 min de leitura

Atualizado: 27 de abr. de 2021

Gielton



Sujeito excêntrico. Singular e imaginativo. Único formando de bermuda. Xadrez, ainda por cima, em combinação perfeita com as sandálias havaianas e a camisa social lilás. Haja bom gosto!


Típico inventor. Sabe? Alguém que calça ideias e bota para andar? Transforma um troço qualquer em movimento? Faz a roda girar sem grandes fortunas?


Seu olhar abaixado distancia o outro, mas não o impede de ver longe. Não o diria tímido. Desajeitado no trato, talvez. Não inteiramente egocêntrico, mas o suficiente para penetrar em si e ali permanecer. Por horas, dias ou meses. Inacessível. Pensamentos em órbita insistem em girar. Porém, há ação. Um mestre no fazer sozinho. Homem de carreira solo.


Duas filhas desceram dos céus em seus poucos anos de matrimônio. Amou como todo pai. Dedicou como homem do seu tempo. Fez o que pôde e o melhor de si. Não o suficiente para preencher as lacunas do afeto.


Dedicou-se a engenharia. A mecânica da exploração da terra na extração de bens, sólidos, materiais e minerais. A firma era multinacional. Ganhava bem...


Naturalista desde criança em Passa Tempo. Nos tempos áureos de pleno emprego, adquiriu um pequeno sítio. Esse sim, envolvido por uma mata verde, vibrante, com vida que pulsa a cada a seiva, na raiz que se aprofunda, nos troncos que se entrelaçam. Viveu bons momentos em família. A neta aproveitou, quando criança a piscina, os lagos, as trilhas, o córrego que corre ao fundo.


Há alguns anos vive ali sozinho. Uma solidão de gente. A família distanciou-se. A neta adolescente não curte mais as águas. As filhas preferem a vida em cidade. A esposa não suportou. O vazio de pessoas é ocupado com coisas. Ferramentas transformam ideias em utensílios. Uma raíz invertida vira um bizarro lustre de teto. Ilumina o tenebroso. Uma bomba elétrica no riacho chicoteia água pelos poros da irrigação. O jardim, hoje, mal cuidado, recebe água com um simples girar de chave. Assim, os dias passam. As horas são ocupadas entre o mato e a TV, entre a varanda e o computador. Entre o tédio e a esperança.


Se rende. É hora de partir. O corretor chega para avaliar o imóvel.


— Bom dia. Qual o nome do senhor?


A barba branca se mistura à máscara pandêmica. Os óculos grandes denunciam a idade. A protuberância abdominal confirma. Responde.


— Me chamo Galileu.


— Houve um grande cientista com esse nome? Não seria...


— Não tão inteligente quanto eu, porém, mais humilde.

Responde com a frase pronta.


Galileu dá os primeiros passos para apresentar sua residência. Detalhista na essência, vai nas minúcias. Mostra a reforma da cozinha. "Puxadinho de engenheiro", pensa o corretor. A casa é escura, labiríntica... Não há flores, nem toalhas de mesa, observa, perspicaz o anunciante.


Estão agora na suíte. Pequena para o conviver de um casal. Embrenham-se por portas adentro, passam pela sauna e alcançam a piscina aquecida, dentro de um cômodo de pé direito baixo, envolvido por vidros.


— Fiz um sistema de aquecimento que mistura um trocador de calor no telhado com um aquecedor elétrico. Basta ligar essa chave...


Ouve-se um estouro lá dentro acompanhado de um cheiro de queimado. Correm até a cozinha. O quadro de luz, em chamas, denuncia o curto-circuito. Ainda bem que o fogo, sem alimento, se esvai.


Galileu murmura para si mesmo


— Sabia que a fiação não iria suportar. Preciso trocar a chave geral.


Assim, a vida. Pede equilíbrio em seus domínios.



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Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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