top of page
  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Gielton



ree

Estou ainda sobre efeito da biópsia. Uma parte de mim foi e voltou em letras ininteligíveis.


— Seu tumor foi maligno — disse o doutor.


— E abolido por inteiro — completou em estado de missão cumprida.


Vontade de derramar lágrimas, ali mesmo, no meio do consultório. Deixá-las caírem soltas, esparramadas aos montes pelos olhos, um deles ainda ferido pelo bisturi. Sensação de incompetência na vida. Sentimento de "não sei porque aconteceu comigo". Vontade de desfalecer...


Não, não posso. Preciso manter a postura. Ouvi o médico dizer que foi totalmente retirado? São raras as reincidências? Lorota... Como o exame sabe disso? Sem lógica. É, mas dos males o menor, quem sabe? Posso me aderir a isso. Não sei... Não sei de nada... Nem quero saber... Nem sei o que devo sentir...


Desaconselhou a viagem planejada para revisitar o mar, a areia, as ondas... Muito Sol e água não seria bom para as vistas. Tá bom. Isso é "o de menos". Já viajei tanto nessa vida. Era só mais um feriado mesmo. Podemos arrumar outro lugar para descansar. Não quero pensar nisso agora.


Deixe-me ler esse laudo. Já não enxergo nada sem os óculos. Logo eu que tinha o maior orgulho de ter uma boa visão. Pus as lentes. Confesso, não entendi patavina. Palavreado indecifrável. Vontade de lacrimar. O que falam de mim? Da minha vista? Que eu nem sei?


O coração desceu apertado dentro do elevador. Recolhi-me em um canto daquele cubículo como se não fosse ninguém. Vixe, onde está o cartão que libera a roleta? Ainda bem que sou organizado. Me acho... Enfiei a mão no bolso esquerdo, saquei o cartão, inseri no buraco quase sem enxergar e passei. Ah, livre desse lugar. Livre dessa dor...


Que nada, me perseguiu pelas ruas. Acompanhou como uma sombra. Persistiu atrás e por cima de mim. Sem dó... Era isso que precisava viver? Porque comigo?


Delicadamente minha filha, acompanhante da consulta, falou sobre os apartamentos para alugar. Ouvi com atenção dividida. Estava lento no pensar. Talvez ela quisesse me distrair. Mudar meu foco. No entanto, disperso permaneci.


— Consegue mesmo dirigir pai?


Nos despedimos. Estava sozinho. Eu e eu. Eu e minha alma. Poderia chorar tudo. Não quis. As lágrimas empedraram. Disfarcei pensamentos. Uma espécie de serenidade me invadiu. Não me importava com os carros lentos, com o sinal fechado, com o trânsito chato. Era como se ali não estivesse. Flutuava solto no ar, distante das migalhas do desnecessário. Como se o rumo da vida desarrumasse e a linha da existência, frágil como uma pena, se soltasse no vazio. Um vácuo em forma de nada empalidecia meu contorno. Quem sou?


— E aí, como foi?


Minha mulher pergunta antes de eu terminar de abrir a porta.


— É maligno, mas foi todo retirado.


Caiu em prantos. Senti-me amado.


Imagem do post em <https://pin.it/53KCqHq>

 
  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Atualizado: 16 de mar. de 2021

Gielton



ree

Transcorreu tudo muito rápido. O primeiro, mal olhou nos meus olhos e, categoricamente, afirmou:


— Não faço esse tipo de trabalho. Não compensa financeiramente.


Deixei o ambiente. Apesar de bem decorado, inóspito. Prossegui pensativo: Quanta algidez nessas palavras. Duras e secas.


Na manhã seguinte a cena imitou a precedente. A sala era fria, não que a temperatura estivesse baixa, era o ar carregado de indiferença e interesses escusos.


— É necessário certa urgência. Tome esse papel e aguarde a ligação da secretária. Ela resolverá toda a burocracia.


Atingi a antessala desiludido. Um papelzinho com um número de telefone passado por debaixo da mesa? Estranho. Aí tem! Esse prestava o serviço, mas o cifrão volteava os olhos.


Dois dias depois aguardava para atendimento em outro guichê. Os cadastros são, em geral, muito chatos. A atendente era bonita. Meu desassossego nem permitia apreciá-la. A espera foi longa... Tudo na vida passa!


— Conheço demais! Então vocês foram colegas de científico? É uma pessoa admirável.


Elogiou meu amigo que o indicara.


Senti-me em casa. Acolhido. O papo reto na direção certa, contornava serpenteando afetos que me conduziram a um estado de confiança. Em nossa capital provinciana encontramos rápidas conexões. Mundo pequeno, né? Enorme nas possibilidades, nas sincronias, no acaso nada aleatório, mas repleto de intenções amorosas por detrás de outro mundo não visto através de raios de luz.


Tudo acertado, sem meias palavras e interesses encobertos. Sim, o certo, o justo, o coerente. Nem mais nem menos. Na medida do que nos cabe a cada um.


O dia chegou, finalmente. Tudo se deu em menos de uma semana da primeira consulta. Apreensivo? Claro. Afinal era minha visão que estava em jogo. Medo? Óbvio. Como seria possível bisturar parte tão sensível? Deve doer, certamente. Gastura só em imaginar. Tenho pânico da sofrência física. Prefiro a segurança do controle, o apego a cordas ou corrimões que nos protegem de abismos indecifráveis. Não, dessa vez, estaria em mãos alheias. Seriam firmes? Cuidadosas? Precisava contar com isso!


Semelhava uma cadeira de dentista. Luzes na face! Posição oblíqua. A anestesia local entrou fácil e vertiginosamente empalideceu sensores. Uma máscara vedava meu olho esquerdo. Através de um orifício, via toda a movimentação no direito. Vai, pega algo. Volta. Futuca. Retorna com outro instrumento. No início comichão, músculos rígidos. Atenção total, como se fosse possível fazer por ele. O sofrimento não veio. A dor não se manifestou. Nada sentia, apesar de tentear.


Relaxei. Entreguei-me ao outro. Mobilizei energias e pensamentos. Senti presenças. Estávamos acompanhados. Algo me dizia ser a melhor forma de estar. Confiar, deixar-se amar. Sim, um ato de amor tocar o outro em nome da cura.


Minha mulher aguardava na saída. Companheira para todas as lutas. De olho manco a abracei e agradeci. Um curativo tapava minha visão. O coração tinia esperança.


Imagem do post em <https://br.pinterest.com/pin/523050944228952735/>

 

Gielton



ree

Meu olho direito tem se avermelhado, porém sem dores. Eu e minhas teorias: o excesso de tempo no computador, devido as aulas online é, certamente, a origem. Melhor agendar um oftalmologista.


Fomos, eu e minha mulher. Juntos, cada um com suas miopias e olhares distorcidos. Já vem aquele colírio. Olhos fechados por breve tempo. Abri. Enxergo normal. Nenhum desconforto. Sou foda mesmo! Todo mundo reclama dessas gotinhas. Manha pura!


Entro no amplo consultório repleto de equipamentos. Sou conduzido a cada um. Enxergo levemente menos. Da última lente são poucos graus a acrescentar, segundo a médica. Contudo, o exame minucioso e demorado, detectou um quisto.


— Tumor, doutora?


O tom reto de sua voz surpreendeu-me.


— Sim. Será preciso extraí-lo e fazer biópsia.


— É grave?


— Está superficial. Mas é importante averiguar. Vou te encaminhar.


— É câncer?


— Pode ser benigno. Só a biópsia dirá.


Tentei acalmar meu pânico, mas o susto instalara-se. Um terrível temor de um possível tumor acometeu-me. Melhor fingir!


Contei a minha mulher ainda na sala de espera. Arregalou os olhos, não as pupilas - não gotejaram o tal colírio nela.


— E aí? É grave?


— Não, não é nada não! A biópsia é só para confirmar que não é nada.


Disfarcei o medo. Desviei o assunto. Torci levemente o pescoço para o lado e assobiei mentalmente.


Era fim de tarde e o Sol, próximo a linha do horizonte, refletia na calçada. A vista não tolerou. Estreitei os olhos imediatamente. Só aí raciocinei. É para dilatar a pupila, seu arrogante! Na sala de exames do edifício tudo parece normal, mas a fotofobia torna-se insuportável na claridade. Bem próximo ao carro, pensei: posso voltar dirigindo, sou foda mesmo! Melhor não. Depois acontece alguma coisa e eu me ferro!


— Você pode dirigir? A sensibilidade à luz nem me causa tanto incômodo, mas julgo ser mais prudente.


Na primeira esquina intrometi.


— Não, é por ali!


— Pensei em ir pela Guajajaras.


— Claro! Faça seu caminho.


Que mania de controle! O brilho estava intenso e ofuscava até os pensamentos. Cerrei os olhos. Um oásis na escuridão. Adentrei em mim e brinquei de cego. Sei que isso não é brincadeira, mas fiz assim mesmo. Redobrei minha atenção ao movimento, às curvas, às paradas. Seguia a rota do carro como em um mapa mental, enquanto aromas me agraciavam. Mantinha integral atenção à conversa com minha companheira, ao mesmo tempo em que debulhava, vindo do rádio "Canção da América". Respondia prontamente e ainda pensava na última crônica e nos textos de Clarice (tão íntima minha...).


Comentei.


— Ela disse que pensa escrevendo, como você. Eu não, construo toda a narrativa na minha cabeça. Início, meio e fim.


Estava tão gostoso de olhos fechados. Não via, mas ouvia. Escuro por dentro e lúcido em pensamento. O arbítrio da situação encontrava sua falta. Isso era bom. Também, que mania de olhar tudo, de prever o próximo passo, de saber o que se passa nos arrabaldes... Tão bom saber nada disso. Deixar-se levar. Confiar!


De volta para casa. São e salvo!


Escrevi como Clarisse, sem saber muito bem para onde iria, nem onde chegar. Quem me dera! Arrogante, imitão. Imitação boa, eu acho.


Assim, a vida.


Imagem do post em <https://pin.it/3zP8LeG>

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

  • Ícone de App de Facebook
  • YouTube clássico
  • SoundCloud clássico
bottom of page