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Atualizado: 4 de jun.

Gielton


Mãos dadas





O menino só fez uma pergunta e congelou o carro todo. Olha só o que rolou?


Jovem, vinte e poucos anos, estudante universitário, resolve ser Uber recorrendo ao carro dos pais. Estes, apreensivos, colocam em seu embornal uma lista de prudências.


Horários definidos – somente durante o dia – além de regras estipuladas e negociadas, deram ao negócio (um empreendedor?) um ar de aparente brandura. Nos tempos atuais exigiram localização em tempo real pelo Google Maps, GPS, Whatsapp e os cambau!


O pai acompanhava, quando podia, as rotas e trajetos do velho carro. Quando lhe faltava Internet e a foto da cria permanecia algum tempo fixa no painel do celular, batia-lhe um frio na barriga. Pensamentos ruins são como chuchu na cerca, espalham-se numa velocidade atroz. Do córtex frontal atravessando o lóbulo esquerdo, as malditas sinapses induziam batimentos cardíacos acelerados até a atualização do aplicativo. Alívio!


Em casa, de volta da “uberância” do dia – nem sempre com o bom humor necessário – contava causos acontecidos. Tudo indicava uma rica experiência pessoal: conviver com gente, lidar com elas, sentir humores, odores e fragrâncias. Navegar por espaços desconhecidos, adentrar ruas nunca antes visitadas, aprender a ir e voltar. Atentar para os perigos e atrações ao dispor da vida…


Contou, certa vez, que entraram três passageiros: mãe, filho e filha.


A mãe, de aparência simples, trajava uma calça jeans. Tinha o cabelo preso atrás por uma gominha cor-de-rosa. Observou quando, ao sentar no banco de trás, se virou para ajeitar o cinto.


O filho, ainda criança, sentou-se ao seu lado. Tinha um olhar curioso. Sorvia o mundo em todos e por todos os sentidos. Inquieto, o motorista pôde perceber, pela ligação. Uma espécie de 220 volts alternado! Virava-se daqui, mexia ali, interrogava acolá. Girando a maçaneta, abriu o vidro e pôs o queixo para fora. Exclamou antes da partida: "viu o fusca bege, mãe?".


Quase ao mesmo tempo, a filha, ruiva e descolada, sentou-se à frente deixando à vista as tatuagens de animais no braço e o piercing entre as narinas. Deveria estar próxima dos dezesseis anos. A mini saia deixava suas magras coxas à vista. A sandália gasta deixava à mostra as unhas com esmaltes pretos e desgastados.


Logo após a partida, o garoto que estava vidrado na vitrine em frente pergunta:


— Mãe, o que é sexshop?


O condutor segurou o riso, fez para si uma cara de espanto e observou a expressão de desprezo, com um franzir de lábios, da passageira ao seu lado. Pôde ler seu pensamento. "Vê se pode, a pergunta desse pirralho!"


A mãe desconcertada, sem saber o que dizer, disfarçou em um silêncio que imobilizou todo o interior do automóvel..


Movendo os pés entre o acelerador e a embreagem o “uberista” arrancou. Como se esse andar da carruagem ativasse brechas no pensamento, o garoto repete.


— Mãeê, o que é um sexshop?


Diz ele – o motorista – que sentiu o aperto da mãe quando uma tosse seca, sem aviso prévio, saiu forçadamente de sua garganta. Não havia secreção e muito menos coriza...


Surpreendentemente a irmã reorienta o dorso para trás e diz:


— Carlinhos, sabe como é, né? As pessoas se apaixonam. Quando isso acontece, elas gostam de se presentear. Para isso serve o sexshop.


— Ah... Mas por que elas não compram no shopping normal?


A jovem, a essa altura, demonstrava sua sagacidade e perspicácia. O motorista já havia percebido. Ela continua:


— As peças vendidas em sexshop são íntimas de um casal e próprias para momentos de namoro, entendeu?


Em poucos segundos, a mudez se desfez novamente em um rompante de clareza.


— Ah, sim... Sexo Shopping - presentes para a hora de transar!!!


Assim, a vida. Como crescem rápido!


A imagem desse post está em <https://pin.it/3Jz4tU4>

 
  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Gielton


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Minha filha, ao volante, entra na garagem. Confunde-se com os vários controles remotos emaranhados na mão. Eu, na cadeira do passageiro, penso. "Deveria manter o controle consigo para fechar o portão mais rapidamente". Porque ainda julgo atitudes dos outros?


Era noite e voltávamos da Telha Norte, uma enorme loja de produtos para casas em construção ou reformas. É o meu caso. As cerâmicas do banheiro estufaram. Aí, já viu. Obra interminável!


Ela diz amedrontada mirando o retrovisor:


- Há uma movimentação estranha no portão. Parece uma sombra indo e vindo.


Desci rápido do carro. A essa altura, o aparelho desembolado, já ativara o fechamento do portão. Chovia lá fora. Nossa! O céu tem é desabado água nesses tempos. Da grade do portão a vi. Era a senhora, moradora de rua que, de vez em quando, passa a noite sob nossa marquise. Puxei assunto.


- Boa noite, como vai a senhora. Anda sumida.


Com seu jeito acanhado e a voz enforcada para dentro da garganta, veio com a lorota de sempre para pedir alguma coisa. Qualquer coisa!


- Ah, hoje estou querendo tomar um banho quentinho no centro. Tem lá, dez reais.


Saquei minha carteira do bolso. Havia uma nota de cem, duas de vinte e uma de dois reais. Dei-lhe vinte reais. Como se um rompante de humanidade me acometesse. Fugi do meu padrão, sem motivo aparente.


- É para seu banho, hein? - Ordenei


Imensurável o tamanho de seu sorriso. A boca escancarada e a gengiva aparente, seguida de "Deus lhe pague", foi sua forma de agradecer. Virou-se e seguiu adiante, como se não houvesse tempo a perder no tocar a vida.


No dia seguinte, José, o neto, depois de ganhar beijinhos dos avós na cama, me acompanha até a padaria. Avistei-a assim que o "tec" da trava elétrica soou.


- Bom dia. Como vai a senhora? Foi ao banho ontem?


Ela desceu a rua aproximando-se de nós. Titubeando disse.


- Fuuuui... Não, eu não vou mentir. Ontem, sabe aquelas pizzarias do lado de lá da Amazonas? Comprei uma pizza e comi inteirinha... Uma delícia. Deus o abençoe.


José, impaciente danou a subir a rua. Fui atrás. Na volta, com os pães debaixo do braço, a interpelei novamente.


- Então, a pizza estava boa? Como a senhora se chama?


- Lu...


- Como?


- Meu nome no documento é Luci, mas me chamam de Raquel


- Luciana?


- Isso.


- Mas, porque te chamam de Raquel?


- É que um dia eu disse que queria um nome de princesa. Raquel.


- Bonito nome. E porque a senhora está na rua?


Seu semblante entristeceu. Cabisbaixa, tentou esconder as lágrimas que gotejavam na ponta do nariz. Sem conseguir disfarçar, embargada, completou.


- Não gosto de falar disso. A tristeza aumenta muito... A dor vem com força...


Enquanto conversávamos, pensava. Isso pode dar uma boa crônica. Maldito pensamento. Apropriando-se da dor do outro para benefício próprio? Como pode ser tão perverso?


- Onde nasceu?


- Monlevade. Um dia ainda volto para casa. Vou só resolver alguns problemas primeiro.


Humm, sei. Fui entrando. Antes que fechasse o portão ela veio atrás pedindo algo. Eu não entendia sua conversa atarantada, como se uma trava na língua não lhe desse mobilidade suficiente. Na dúvida disse:


- Hoje não tenho dinheiro. Paguei a padaria com cartão.


Mentira! As mesmas notas estavam na mesma carteira. Nem pensar em dar vinte reais de novo.


- Não quero dinheiro. Queria um café com leite quente.


Ducha de água fria em minha maldade.


- Espere, vou ver se consigo.


Lá de cima gritei. Luci! Você está aí? Ouvi sua voz rouca e trêmula. Desci com uma caneca de café com leite.


- Aqui está.


Apanhou com as duas mãos.


- Deixo a caneca aqui depois.


- Não, pode levar. A senhora fuma craque? - perguntei quase sem querer.


Porque ainda desconfio das pessoas?


- Deus me livre!


Subiu a rua assustada.


<A imagem desse post está em https://pin.it/1btq9J4>


 

Gielton



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"Sim", ela disse subliminarmente, como se fosse ao pé de ouvido. Ele levantou-se da cama, passou os dedos por entre os cabelos grisalhos e, intrigado e distante, vagou em pensamentos. Seguiu a vida atribulada, atarefada. Afinal, tanto a conceber, tanto a adquirir. O mundo não pode parar. De repente, uma cravejada no coração, um bambear de pernas, um suor frio e seco. De úmido, só a dor e o medo, transpirando pelo corpo todo. O sofá do escritório foi seu cúmplice. Aconchegado em seus braços, chorou lágrimas de tristeza, lágrimas de incertezas. "Calma", disse a voz misteriosa. "Proponho lhe um trato". Ele pensou: um pacto? Venderei minha alma ao diabo? O que se passa? Quem você pensa que é? Ela, placidamente, explicou. "Almejo experimentar a vida. Em troca, concedo-lhe mais tempo". Acordados, tornaram- se amigos nesses poucos dias de convivência intensa. Ela incorporou-se em uma linda mulher amável e acolhedora. A inteligência nata, mesmo que, para pequenas coisas do cotidiano, fosse, às vezes, inábil e desajeitada, evidenciava-se pela altivez de suas decisões. Sua sensibilidade à vida era cristalina. Valorizava cada átimo. Perspicaz na leitura de almas. Em um piscar de olhos a intenção por detrás das ações alheias delatava-se a si mesma. Tudo captado como se do além. Ele parou tudo! Não havia mais o que conquistar senão o amor. A serenidade invadiu-lhe em atitudes. A gratidão tomou-lhe a graça. Era preciso apressar. Apaziguar as relações. Recuperar o que fosse possível. Reconciliar consigo e focar no que de verdade importa. Tocar suavemente nas profundezas daquilo que fora depositado no fundo da alma. Submergir. Ambos aproveitaram-se um do outro. De mãos dadas nas buscas individuais trilharam rotas de fugas ao comum. Enfrentaram-se, cada um a si mesmo. Ela apaixonara-se pela vida. Ele se prontificou para a morte. A morte e a vida foram, então, lado a lado, em comum acordo, ao encontro do destino inevitável, pois até a morte precisa, um dia, morrer. (Inspirado no filme Encontro Marcado dirigido por Martin Brest)

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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