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Atualizado: 25 de nov.

Gielton

Mão de um idoso recebendo água de uma torneira

Por que tentamos segurar o que escorre?


A vida é frágil, todos sabemos. A morte é a certeza da vida. Deste mundo não levamos nada. No entanto, caminhamos como quem segura água com as mãos, agarrando o que escorre. Apego é tolice antiga que não soltamos. Por quê? O que nos faz tão tolos?


Andei pensando sobre isso. Estou na idade dos pensamentos futuros. Tipo, o que será de mim na virada da página do calendário?

As crianças, peritas do instante, brincam sem medo de perder o tempo. Imersas, lambuzam o queixo apenas para decifrar o sabor vermelho dos morangos. Os jovens, ousados e equilibristas da vida, encaram as paixões como se fossem eternas. E são!

E nós, os já avós, como negociamos com o tempo escasso e, ao mesmo tempo, abundante?


Sabedoria, talvez seja a palavra mágica. Essa não brota do chão mal semeado, nem cai do céu como em dias chuvosos. Muito menos invade os pulmões, como o ar que não pede licença. É uma alvenaria lenta e solitária, tijolo a tijolo. A argamassa que transborda pelas beiradas vem em forma de perdão e aceitação sem julgamentos.


Sabedoria seria o fruto maduro das boas escolhas? Um jeito sereno de estar consigo diante dos outros? Aceitação como chamado para o mais? Ou apenas uma escuta capaz de parar o relógio?


Seja o que for, quero alcançá-la. Deixar fluir a certeza do inesperado. Sentir plena a existência enquanto há tempo. Ser apenas eu em essência. E amar… Com o coração, a voz, as entranhas, o corpo todo. Amar com a alma até transbordar!


Pronto, no dia da partida, fechar a porta com delicadeza, dar um "até logo" baixinho e seguir como quem cumpriu a própria travessia.


Assim, a vida! E só…

 

Gielton




ree

Netos são criaturas especiais. Além de anjos recém chegados do céu, são crianças de grande sabedoria.

Estava morrendo de saudades do José. Não nos víamos há mais de duas semanas. Da última vez a despedida foi chorosa, sentida por nós dois. Tivemos que partir e deixá-los. A vida clama por compromissos inadiáveis.

Voltamos ontem, quinta-feira da paixão. Já anoitecia. O trânsito chato de Lagoa Santa me deixou ainda mais ansioso por vê-lo. Ainda dentro do carro disse para a turma que viajava comigo:

- Gente, se o José já estiver dormindo, juro que vou acordá-lo. Estou tomado pelas saudades.

Que nada, passou o dia ansioso com a chegada dos avós, disse a nora querida. Ela, sim, tem autoridade. Faz as leituras mais precisas do filho.

Quando entrei na casa com um monte de bagagem dependurada pelo corpo ele já estava no colo da avó. Assim que me viu, abriu um sorriso tão, mas tão genuíno que me derreti todo. Me liquefiz quando estendeu os braços fazendo um movimento em minha direção. Larguei as tralhas do jeito que deu e o apanhei. Sussurrei no seu ouvido:

- Vovô tava morrendo de saudades desse menino.

Grudamos. Agarramos um no outro. Parecia o reencontro de dois velhos amigos com muitas histórias para contar, mesmo que apenas através de balbucios.

Restavam ainda algumas sacolas no carro. Fomos buscar. A intimidade era tamanha que pegou meu indicador esquerdo e começou a morder. Disse:

- Ai José, tá doendo.

Ele continuou, devagar. Até que apertou com força. Doeu de verdade a mordida de mais de seis dentes. Ainda não tem a medida do seu vigor. Reativamente gritei, sem grandes escândalos:

- Ai, ai, ai...

Sua feição mudou e um choro sentido saiu de suas entranhas. Os profundos soluços e lágrimas nos olhos podiam ser traduzidos como:

- Vovô, não briga comigo.

Imediatamente lhe pedi desculpas e tentei suavizar sua tristeza. Andamos um pouco pela rua para ver a Lua cheia alta no céu. Sessou o choro. Será que me perdoou?

No reencontro com a mãe caiu em prantos novamente. Recebeu, então, o outro colo, daquela que ainda o amamenta.

Pensei, eita avô bobo. Se achando o mais querido, toma!! Crianças são inusitadas. Esse garoto é sensível ao tom de voz mais forte. É tocado por qualquer expressão mínima de agressividade. Seria uma forma de manter a pureza e se proteger das pancadas da vida?

Hora do banho. Entrei no chuveiro e pouco depois a vovó o trouxe. Abriu aquele mesmo sorriso e se inclinou. Deitou a cabecinha no meu ombro e ficou ali, sentido a água quentinha do chuveiro sobre as costas. Nessa hora tive a certeza que me havia perdoado. Quanta sabedoria. Quanta boa energia. Que delícia sentir sua calma na fluidez da água.

Saiu chorando, como quem diz:

- Deixa-me ficar aqui, um pouco mais, com meu avô!!!

Da sala da TV ouvia suas gargalhadas de alegria enquanto o tio e sua namorada brincavam com ele no quarto vizinho. Criança feliz. Vive cada momento de uma vez, um a um no seu turno.

Pensei, vão agitar o menino e atrapalhar sua hora de dormir. Que nada. Pouco depois saímos para a rua silenciosa do bairro. Já havia coçado os ouvidos e bocejado o suficiente. É assim que expressa seu cansaço. Era hora de dormir. Teria a calma suficiente para se entregar?

Comecei a cantar: "Uma bonequinha preta..." A mesma canção a qual já adormeceu várias outras vezes comigo. Dessa vez foi diferente. Surpreendentemente deitou novamente sua cabeça sobre meus ombros, como quem diz:

- Vovô, estou cansado. Conheço sua energia e confio. Sei que é hora de dormir.

Em pouco tempo adormeceu. Senti seu peso relaxando aos poucos sobre o meu corpo enquanto caminhava à luz brilhante da Lua. Vontade de ficar ali pela eternidade.

Assim, a vida. José tem menos de um ano e a sabedoria que muitos de nós deixamos escapar.

 

Atualizado: 6 de ago.

Gielton


Pedaço de abóbora




Você também odiava legumes na infância?


Abóboras no carro de boi se ajeitam e se encaixam a cada solavanco. Os pequenos vazios se entrelaçam aos gomos que roçam uns nos outros, tecendo uma rede de contatos ao longo do caminho. Metáfora da vida?


Confesso, quando criança não gostava de legumes, quase nenhum. Preferia o tradicional bife, passado em duas frigideiras pela minha mãe, com batatas fritas, arroz e feijão. A carne vinha com um caldinho especial, bom de molhar o arroz e deixá-lo em tom amarronzado-escuro. Hummm… que delícia!


Abóbora? Nem pensar. A textura não agradava. O formato disforme causava certa ojeriza. O sabor? Esse não descia "nem a pau". Era preciso tapar o nariz para suportar o cheiro, mesmo com o preparo cuidadoso.


Bebês são incentivados a saborear legumes quando colherinhas viram aviões que entram nas garagens de seus bocões abertos. "Iõnnn". Às vezes, aceitam, outras, não. Para as crianças crescidas, as brincadeiras onomatopaicas dão lugar a outros convencimentos.


— Mãe, não gosto de abóbora.


— Vou deixá-la amassadinha no feijão. Você vai ver que delícia!


O feijão batido se alaranjava e perdia o gosto. Buscava nos cantos do prato a parte roxinha não misturada para evitar o sabor da abóbora. Quando possível, furava a gema do ovo mole para disfarçar o paladar.


Enquanto as abóboras continuam seu balé nos carros de boi, meu gosto foi aprendendo novos passos. Já moço, seguindo as pautas do meu tempo, tornei-me vegetariano. Parei com a carne e foi assim que a moranga, abobrinha, cenoura amarela, vagem e couve foram conquistando espaço no meu cardápio.

Na estrada, levando comigo a sombra da infância, fui incorporando novos tons ao paladar. De carona, viajamos, eu e minha namorada, pelo Brasil afora. Uma panelinha amarrada à mochila era a base do nosso cuidado alimentar. Ao lado da barraca armada na areia da praia, improvisávamos nosso próprio fogão à lenha. Ali mesmo, cozinhávamos sempre o mesmo prato: carne de soja com abóbora. Barato, simples, cheio de sabor.


Hoje, com a medalha de avô no peito, degusto com gosto abóbora cozida, assada, no caldo… Sua cor me enche os olhos e seu sabor me apetece. Deleito-me com sua consistência entre a língua e os dentes.


— Alô mãe, vou fazer o sacolão aqui de casa. Se quiser, aproveito e compro alguns produtos para a senhora.


— Quero sim.


— Então, me passa a lista, pelo telefone mesmo, que eu anoto.


— Cenoura, vagem...


— Ok, tudo anotado. Cenoura, vagem... Abóbora?


— Não, abóbora eu não gosto.

O silêncio me toma e um filme desfia meus afetos. Vejo imagens de encaixes aos solavancos como gostos que se aprendem ou se deixam para trás.


Assim, a vida! Quantos segredos moram nos sabores da infância!

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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