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Gielton


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Garoto esperto! Desde muito novo era um ás na bicicleta. Eu tinha uns dezesseis, ele, uns dez. Minha bicicleta era de gente grande, a dele, de gente pequena. Andávamos juntos pelas ruas do bairro, a Nova Granada, quando seus pais iam nos visitar. Sua mãe era sobrinha da minha.

Dessas deliciosas pedaladas, quase infantis, nasceu um sonho: seria eu jovem o suficiente para bikear com meus filhos?

Águas de muitos carnavais passaram debaixo da ponte. Ela, quase bebê, se sentava na cadeirinha presa ao guidão e ajam domingos de Sol para pedaladas e pedaladas. O segundo, ainda caçula, também se esbaldava com o pai ciclista. Ambos adoravam. Eu, nem se fala.

Itaúnas, cenário de praia e dunas no Espírito Santo, teve nossa preferência por anos a fio. A magrela e a cadeirinha iam dependuradas na traseira, quase caindo BR afora. Um dia eles cresceram. Agora eram três bikes atadas ao porta-malas do Voyage preto, além de tantos outros babilaques. Tudo destinado ao prazer das férias.

Em terra firme, a pergunta era recorrente.

- Onde você alugou as bicicletas?

Orgulhosa era a resposta na ponta da língua.

- Não, eu as trouxe no carro.

O espanto era a consequência.

Ensinar a se equilibrar foi o primeiro passo. Segurando no banco, correndo atrás e dizendo "vai, pedala". "Não para"... "Continua"... Até...

- Ô pai, você me soltou! - Viu? Você já consegue sozinho!

Aí era só ganhar confiança. Mais algumas sessões de incentivo, seguidas de desfoladas superficiais e pronto. Com a baixinha dominada era só curtição em família.

Voltei ao menino de dezesseis, agora com os filhos, cada qual se equilibrando nos contornos do caminho. Não tinha tamanho para a felicidade que sentia. Sonho ou realidade?

Veio o terceiro, temporão. O ritual se repetiu, de um jeito diferente, é claro. As pessoas mudam, as coisas mudam, mas a cadeirinha e a bike do mais velho foram herdadas. Sonho?

Nesses dias comprei outra cadeirinha. Escolhi o velho e conhecido modelo dentre outros tantos mais modernos e cheio de piripacos da loja. Ansiedade? Talvez. Só sei que ficou grande para o pequeno mais novo da família. Paciência! Nada como o tempo. Cresceu, ficou durinho, aprumou-se.

Ontem saímos, pedalando pela praça. Quanta memória, quanto prazer! Os pezinhos ainda não alcançam o apoio. O guidão alto não impedem suas mãozinhas firmes o segurarem. Não imponho velocidade, mas sinto o vento por ele, sinto o mundo passando por ele, por seus olhos atentos. Sinto seu prazer e ele sente o meu. Entramos em simbiose e silenciosamente nos conectamos. Os sons dos nossos corações se encontram entre a bicicleta e a cadeirinha.

Assim, a vida. Algum sonho ainda por vir? Por enquanto vivendo o momento. Pedalar com o neto pelas ruas da cidade. Obrigado por existir, José.

 
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Gielton

Saí cedo em direção ao Detran. Pensei: vai ser fácil. Reservei minha manhã. Tempo não seria problema. Vou economizar uns 300 reais do despachante.

Na esquina da Amazonas a jovem me aborda. Abri o vidro.


- Vai fazer transferência?

- Sim.

- Já pagou a guia? Está com protocolo?

- Sim.

- Fez o agendamento?

- Não.


Foi aí que dancei. Estranho, as pesquisas na Internet indicavam agendamento apenas para outras cidades.

Como se lesse meu pensamento rapidamente completou.


- Desde o dia 17 é obrigatório o agendamento. Cinco reais para fazer.

Pronto, fui pego.

Ela entrou no carro. Logo que estacionei examinou detalhadamente os vidros.

- Esse Insulfilm passa. Veja está com 70%. Mas o de trás, não.

- É mesmo? - Respondeu o bobo

- E pior, vão mandar arrancar na hora e, certamente, estragar o desembaçador.

- Será?


Quanta imbecilidade. Vê se pode? Arrancar o Insulfilm com a unha... Em seguida vem a cartada final.


- Por setenta reais o despachante te acompanha. O vistoriador nem olha o carro, apenas grava o chassis.


O troxa topou.

De fato, os policiais civis fizeram vista grossa. Nos boxs vizinhos a vistoria era mais fina.

Passamos...

Recusei a última oferta e fui, eu mesmo, enfrentar a fila. Sentei-me com a senha na mão. Calculei. Vinte pessoas seriam atendidas antes de mim.

Hora de colocar as emoções em dia. Nossa, como fui babaca de cair nessa lorota? Que raiva! Deveria ter ido eu mesmo e enfrentado de peito aberto aquela porra de vistoria... Se os caras mandassem voltar eu voltaria! Quanta bundice. Estragar o desembaçador! Essa foi demais. E o papel do agendamento? Nem vi.

Com o medo ainda colado em mim, vieram outros pensamentos. E se tiver multa? Não vou conseguir tirar esse documento. E se o IPVA não tiver sido processado? Vão me mandar voltar outro dia. E se faltar algum documento? E se...

Um olho no coração e outro no painel... Esses atendentes são todos uns fdp!!! Tudo policial escroto...


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O próximo sou eu.


- Bom dia - Cumprimentei gentilmente.


É melhor não falar demais. Sei lá, e se resolve encrespar?

Entreguei os documentos. Engraçado, comecei a me acalmar. O atendente, um sujeito de meia idade, transmitia alguma serenidade. Era, ao mesmo tempo, ágil e cuidadoso. Lia e organizava os documentos. Conferia tudo. Parecia de poucas palavras.

- Veja que na nova identidade já consta... Não precisava trazer a certidão de casamento.

Me devolveu a original e, como quem cuida do outro, disse.


- Guarde-a com carinho. É um importante documento.


Fui me desarmando. Pedi para corrigir um pequeno erro de digitação, prontamente atendido.

Notei ao fundo funcionários surdos e mudos se comunicando por gestos. Uma jovem se aproximou e, com as mãos, disse algo que não entendi.


- Tem muitos surdos trabalhando, né? - Tomei coragem para puxar assunto.

- Sim, acho que nessa sessão são uns oitenta.


Elogiei a iniciativa do Detran confirmando a importância desse tipo de inclusão. Ele concordou. Começou a contar casos.


- Tá vendo essa que chegou perto? Mora em Santa Luzia e foi sua primeira e única oportunidade de emprego.

- Que coisa boa! - Devolvi prontamente.

- Aquele maior, no centro, desenha que é uma beleza. Seria o melhor retratista falado da polícia... Um talento desperdiçado. - Dizia com tom levemente embargado.


Contou, em seguida que, já com alguns anos de casa, o enviaram para o setor de carteiras. Quase todos os funcionários eram surdos e mudos. Argumentou com a chefia que não daria conta. Ao final concluiu:


- Não existe salário que pague a riqueza dessa experiência. Tornei-me outra pessoa...


O agradeci profundamente pelo excelente atendimento. Despedimo-nos, ambos, com os olhos marejados de lágrimas. Vi os deles por entre as lentes transparentes.


Assim, a vida. Encontros "casuais" para transformar nossa energia.

 

Gielton



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Os pés doíam. Especialmente a sola do direito. Meu corpo dizia algo. Seria reflexo das corridas? Talvez. Eram tão boas com Zé Pequeno, meu fiel escudeiro.

Uma greve de caminhoneiros trouxe filas homéricas por algumas gotas de combustível. Quem se lembra? Uma ideia. E se eu for de bike para o trabalho? Reduzo o impacto dos pés com o chão e não consumo combustível.

A velha magrela, tão desgastada, depois de pequenos ajustes estava pronta a ser montada e pedalada com novas vontades e desejos. Desejo de reinventar o próprio caminho.

Fui percebendo aos poucos mas, de cara, notei o olhar ampliado, como se uma enorme lente de aumento fosse implantada diretamente na retina.

Tudo pareceu maior e mais perto. Com o foco no pneu girando vê-se nitidamente os detalhes do trajeto. Pedrinhas pretas incrustadas no asfalto ressaltam aos olhos. Na verdade, ali sempre estiveram, invisíveis. Agora sim, fazem sentido. Espalhadas entre a massa asfáltica dão liga e textura ao piso, deixando-o menos rugoso aos olhos da borracha. Porém, pronto a esfolar qualquer pele sensível que por ventura resolva enfrentá-lo. Todo cuidado é pouco!!

Quando o pescoço se apruma adentra-se a um mundo de emoções. Ah, o vento flamejante nas descidas dão uma agradável sensação de frescor. Como se, de repente, a vida se tornasse mais eletrizante, embalada pelo prazer da velocidade percebida através do ar que penetra suavemente a gola da camisa atingindo providencialmente o peitoral. Coração taquicárdico quase engolindo a si mesmo após o esforço da subida até a Contorno recebe agora, esse toque de descanso e aconchego que invade seus contornos protegidos por tecidos e ossos.

As pessoas estão tão perto! Posso ver detalhes dos rostos, antes distantes nas calçadas, enquanto permanecia no mundo fechado pelos vidros. Agora não, trabalhadoras e trabalhadores. Gente simples cuidando do seu sustento na dureza da vida, na dureza do trabalho. Quem seriam? Empregadas domésticas, vigias, atendentes de padaria? Não importa, o humano se apresenta sem vestes, despido de proteções como se me livrasse de uma armadura metálica. Posso sentir os transeuntes, olhar nos olhos, sentir perfumes ou odores. Cruzar no sinal e dar sinal de passagem por um aceno com a cabeça. Passe, é sua a preferência!!! Observo semblantes... Alguns dispersos, outros atentos. Sorrisos, às vezes, parecem brotar de uma noite bem dormida. Preocupação... Penso. Quanta alma, quanta vida. Que sentido tudo isso teria senão para crescermos juntos nos ajudando uns aos outros?

Os buracos da rua, mesmo os menores se tornaram incômodos. Talvez pela pouca habilidade no manejo da bike, pela pouca simbiose entre ciclista e bicicleta. Como um cavaleiro que pula na cela do animal trotante, sinto o selim subindo e descendo a cada pequena rachadura do caminho. A mão, por mais firme a segurar o guidão, sofre impactos desconfortáveis.

Na loja de bicicletas peço:

- Queria um amortecedor. - Temos esse modelo, o melhor, mais leve e eficiente - apresentou o vendedor. - Quanto? - indaguei pelo preço.

Consultando no computador...

- Quatrocentos reais. - Nusga!!! - Temos outros modelos mais em conta - consertou o vendedor à tempo. - Quanto tempo demora para instalar? - perguntei na expectativa... - Você quer dizer, quantos minutos? - acalmou o vendedor.

Saí de lá com amortecedor novo... Sabe, aquele que alivia a pancada, torna o difícil mais suave, reduz a tensão.

Assim, a vida. Um aparato simples e barato para amortecer a dor e tornar mais fluída as trilhas da existência.

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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