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Gielton


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A manhã de segunda foi mágica. Do nosso quarto ouvi seus gritinhos de alegria matutina. Garoto feliz esse tal de José. Levantei disposto a liberar a mãe para um descanso um pouco mais prolongado. Vesti o canguru. Ele sorriu, como quem pergunta:


- Vamos passear vovô?


Entende tudo. Lê, traduz e expressa seu sentimento na lata. Não tem meio termo, mesmo quando tentamos enrolá-lo. Foi fácil encaixá-lo no canguru. Lembranças me veem. Quantas vezes coloquei meu filhos nesse "baby bag", como se dizia na época. O nosso era bege e as amarras eram de panos com presilhas de metal. Os de hoje, modernos, são mais simples e ergométricos. Meu netinho se acomodou confortavelmente e lá fomos nós para rua.


Sem pressa. A mente livre nos dá inteireza. O aconchego da criança sobre o peito trás ainda mais serenidade. Na frente, onde moram os senhorios, paramos. Uma conversa interminável se instaura. Quanta necessidade de gente eles tem. José e eu escutamos com a maior paciência do mundo. Oferecemos nossos ouvidos. Doamos nossos corações. Era hora de seguir, nos disse a intuição.


A estrada de terra batida, quase sem movimento, era um convite a uma caminhada matinal. Nada de exercício físico. Apenas um andar leve, suave, com um bom papo. Assim, fomos pela estrada afora, atentos ao canto dos pássaros, ao canto florido da estrada de margaridas e beijinhos, aos micos atravessando fios de luz entre os galhos das copas. Fomos assim, simplesmente nos amando... Andamos, andamos. E o tempo? Não sei. Não importa. Só o instante se faz presente. Nada de futuro. Nada de passado. Seria tão bom, se toda a vida fosse assim!


O Sol já castigava quando resolvemos voltar. Nesse tempo, nenhum choro, nenhum resmungo. Sinal de sintonia fina entre nós. A porta da casa estava escancarada. Adentramos. As meninas ainda dormiam. Sabiam, no entanto, que a manhã já avançava. Preparamos o café. Na mesa, enquanto o pão na chapa era preparado, José, no carrinho, bem sentado, brincava com sua estrela brilhante. Isso, uma estrela grande de plástico branco com um LED lá dentro. Boa para sentir como os olhos, a boca, a mão e o corpo todo. Logo vinha a reclamação quando escapava entre os dedos. Era só recolocar. Seu semelhante diante de sua estrela é de puro êxtase.


As meninas iniciaram um papo sério. Percebi que deveria deixá-las. Peguei o José e fomos para o canto da casa onde a sombra penetrava. Previ que poderia estar com sono, apesar de ainda não demonstrar. Criança é assim, luta contra o sono quase sempre. Aproveitam menos a vida quando dormem? Estava ligado a tudo. O pescoço firme deixa a cabeça levantada e os olhos atentos. Como se nada pudesse lhe escapar. Cantei. Nananina, nananina, nananinanana... Busquei dentro de mim uma paz para lhe transmitir. Nada. Estava agitado. Pensei.


- Talvez não esteja com sono.


Foi a conta. Abriu o bocão em um bocejo arrasador. Permaneceu alerta, resistindo. Insisti. Mantive a calma. Continuei cantando e tentando tocar sua energia. Coçou os olhos. Mais sinais. O som da minha voz penetrou um pouco mais. Relaxou, bem devagar até pegar no sono. Ninei um pouco mais antes que acordasse de sobressalto. É preciso confiança para tamanha entrega. Uma honra para mim.

Dormiu uns quarenta minutos. O tanto de costume. Deu pequenos gritos como quem diz.


- Acordei, gente. Venham me ver.


Larguei o celular. Abriu um sorriso sincero de reconhecimento.


- Ei vovô!!!


Estou treinando minha entrega. Deitei-me ao seu lado. Vimos juntos a claridade por entre as frestas das telhas. Senti seu fascínio. Estávamos juntos de novo. Conversamos com os olhos. Pude ler em sua feição tons de bem estar. Antes que enjoasse mudei o jeito. De barriga para cima o mantive sentado apoiado em minhas pernas. Suas mãos abraçaram meus indicadores e, com um pouco de força, levantava-se. Quando suas costas se soltavam das minhas pernas, dava um pinote para trás. Aprendera a contrair conjuntos de músculos que permitiam esse movimento. Repetiu, repetiu, repetiu... Como se uma nova descoberta precisasse ser incorporada, aprendida, dominada. Ou, simplesmente, pelo puro e único prazer de brincar. Crianças brincam desde muito pequenas. Ríamos juntos a cada novo pinote. A dois nos amamos um pouco mais. Nos encontramos em um instante único, singular. Como se o mundo em volta parasse e ficássemos só nos dois, em estado de simbiose, de trocas casuais entre nossas almas.

Netos, para que tê-los, senão para amarmos!

 

Gielton


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Foi o vovô que, dessa vez, lhe deu banho de Sol naquela fria manhã de junho. Que presente! Peladinho, só de fralda, demonstrava bem estar pelo afago dos raios solares. Na varanda, cor de rosa, o Sol entrava rasante tocando suavemente sua pele macia e sensível. Coloquei-o de frente e tampei, com a mão, seu rosto, fazendo-lhe uma sombra providencial. A claridade certamente incomodaria.

Não pretendia deixar muito tempo, uns dez minutinhos apenas. Enquanto isso, os pais preparavam a água para o banho de banheira que viria em seguida. Eu, animado, relembrava meus velhos tempos. Sou da época de "não basta ser pai, tem que participar".

Levei-o para o quarto. Janelas fechadas para evitar correntes de ar. A luminosidade controlada pelo abajur deixava o ambiente com tom de calmaria. Retirei a fralda e limpei um restinho de cocô. Até o cocô dos netos são graciosos. Que coisa!

Ficou tranquilo dentro da banheira, quase flutuando na água morna. Bonzinho toda vida. Segurei sua cabecinha com uma das mãos enquanto, com a outra, reuni seus braços um no outro, a fim de evitar a sensação de estar caindo. Não deve ser fácil ficar sujeito à gravidade tão repentinamente. Afinal, havia descido do céu há menos de um mês.

Sem mais nem menos, após molhar suavemente sua cabeça, começou a chorar. Primeiro, demostrando um pequeno incômodo, até esbravejar com força. Que berreiro aprontou. Fiquei apertado. Que foi que fiz, meu Deus? Pedi ajuda para agilizar o banho, secá-lo e vestir a roupa. A mãe chegou para acalmá-lo. Sessou o choreiro quando, ainda soluçando, pegou o peito. Que sufoco!

Assim, a vida. Seu caminhar requer cuidado, atenção... A qualquer momento algo pode desandar. Um bolo, feito com carinho, sola; uma palavra, mal dita, dói; um pneu careca fura; um tombo machuca. Assim, a vida. Aprendendo, sempre,

ao longo de seu caminhar.

 
  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Quem acordaria, em um domingo, às cinco e meia da manhã, para trabalhar, de graça, em plena estreia do Brasil na Copa do Mundo da Rússia?

O celular desperta, e sigo o ritual do dia-a-dia. Desço, coloco água no fogo. No retorno, tiro o pijama - uma bermuda qualquer de pano com uma camisa velha - subo na balança e memorizo, para, depois do café, anotar na planilha. Visto a roupa. Com a água já quente, coo o café. Esquento o pão na torradeira, passo duas talagadas de manteiga e quase engulo.

Os equipamentos já estavam previamente organizados desde a noite anterior. Desço os três andares com mochila nas costas e um monte de outras tralhas penduradas pelo pescoço. O carro quase arreia, de tanto peso.

Em quinze minutos estava no centro: Hotel Dayrel. Nas costas, vão as caixas, pedestais, microfones, violão... Uma parafernália, adquirida ao longo de muitos anos. Alguns professores, muito solícitos, ajudam. Rapidinho, questão de meia hora, estávamos passando o som, escolhendo graves, timbres, efeitos... Cuidando do retorno... Cada detalhe é importante. Passamos as três músicas. Nossa, o sax é lindo. Que sonoridade!!!

Pronto, largo tudo e volto para casa. Banho, meditação. Isso, gosto de parar tudo por um tempo, sentir a energia do corpo, entrar em outra vibração, sintonizar, equilibrar os chacras. A cabeça a mil dificulta penetrar nas profundezas da alma. As canções ressoam na mente, quase como se o som, de ondas mecânicas, vibrasse o tímpano.

O celular desperta de novo. Hora de retornar. A previsão era tocarmos às 10 horas, mas professor fala demais. Já viu, né? História, então, nusga!!! Entrou nos meandros das leis abolicionistas do século XVII no Brasil. A cada novo slide eu pensava: deve ser o último. Os pré- vestibulandos, atentos, anotam detalhes.

A ansiedade vai, aos poucos, tomando forma. Lentamente, invade o estado do ser. Haja concentração capaz de controlá-la. Entro no salão, saio... Entro de novo, saio de novo... Vou ao banheiro. Bebo água. Sento-me no hall. O professor não para de falar. Sua voz está distante, longe, longe! Quase não a percebo. Tento entrar em mim. Fico absorto. O tempo muda seu ritmo. Marcha a passos lentos. A hora parece nunca chegar, até que Marcus entra em cena. Fez como combinado. Falou rapidinho dos estilos musicais e nos chamou.



Davi e eu subimos. Grande, o teatro. Umas quinhentas pessoas. Não tive medo. Não fiquei nervoso. Sabia que cometeria pequenos erros, mas acertaria outros tantos acordes e notas musicais. Estávamos bem ensaiados, apesar de as músicas serem complexas. A primeira, "Nas Veias de Brasil", um samba enredo. Mantive firme a batida rápida do violão, enquanto Davi segurava o ritmo no pandeiro. Cravado, quase o tempo todo. Marcus, no sax, arrasou.

Aplaudidos de pé. Isso não importa tanto. Claro, reconhecimento é sempre bom. Melhor é reparar a face, antes combalida, agora sorridente. O olhar parado, típico de aula expositiva, se tornar vibrante e alerta. A caneta batucando, sutilmente, na mesa. O balanço tímido dos corpos, quase sem querer. Música ao vivo toca as pessoas, preenche os quinhões do espaço, reviva a alma, espanta os males!

Quem acordaria às cinco e meia da madruga para trabalhar de graça? Quanto vale?


Revisão: Maria Lucia Pompein Pessoa

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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