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Atualizado: 27 de ago. de 2020

Gielton



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Estava lá com meus dezenove anos e algo me atormentava, apesar de não identificar claramente esse treco estranho. Uma espécie de tristeza contínua, uma angústia cortando o peito, uma sensação de que algo precisava acontecer.


Via pelo retrovisor a adolescência se afastando. As marcas deixadas daquele tempo de incertezas formavam o jovem que despertava com novas indagações da existência. Constatei, olhando ao reverso meus amigos de científico, que não queria uma mulher por querer. Não me atendia a alma o sexo efêmero, casual, apesar de nunca o ter feito assim. O jovem que aflorava aspirava um amor grande, tão amplo quanto o infinito e tão duradouro quanto a demora.


Vivia ainda com meus pais no Santo Antônio. A rua Abre Campo era tão íngreme, mas tão íngreme que toda a calçada era uma escadaria só. Depois do "trec" do último portão do prédio estava no passeio. Degrau a degrau alcançava o topo. Sozinho estava.


Seguia meu caminho absorto. A cada esquina flashes de pensamento cruzavam a mente. Ela vagava tão longe quanto o horizonte. Transpunha edifícios. O medo do amor soprava como um vento no vão entre os prédios. Encontraria alguém de verdade? Dobrava a próxima quina. Vencia estreitos entre árvores de rua e muros das casas. Nesses afunilamentos o turbilhão de sentimentos engasgava-se na aorta e faziam doer o coração. Nem os buganvilas roxos despontando sobre o alto muro da mansão da frente abrandavam a sensação de estar perdido em um mundo ainda mais perdido do que eu mesmo. Não tinha olhos aos sons. Amargura era a cor do fragor que retumbava em minha cabeça.


Quase na Contorno, parava em frente à casa e apertava o botão da campainha. Vinha me acolher a Heloísa. Ela sim, já dona de si, tinha sua própria casa, morava por si só e a si cuidava. Era independente, autônoma. Pagava seu aluguel, sua comida. Tinha seu próprio trabalho. Ganhava sua grana. Era jovem como eu, apenas alguns invernos na minha frente.


Engraçado! No fundo, no fundo, queria o mesmo que eu. Parecia resolvida, mas lamentávamos juntos as mesmas dores. Nos abrigávamos um no outro como um cobertor de lã que impede o fluxo da vida. Fomos cúmplices. Trocamos figurinhas. Apenas amigos que se identificavam na falta, no desejo de alguém para amar, no receio do destino afugentar a pessoa almejada.


Um dia assisti uma moça dançando solta, livre, de saia indiana a rodopiar na pista. Era uma festa de amigos. Minha timidez não deixou que me aproximasse. Apenas sonhei platonicamente. Nesse dia senti a vida sulcando fendas, desatando nós, abrindo clareiras em mim. Inflei-me de esperanças!


Imagem do post em <https://pin.it/2TcMWxX>

 

Gielton


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Era muito jovem quando meus filhos desembarcaram dos céus. Aterrizam como anjos. Nos encantam ao primeiro olhar, ao primeiro choro, ao primeiro aperto de dedos. Tive muito pique e energia para acompanhar a infância deles. Isso foi bom, mas não fácil. Adaptar-se às adversidades da vida a dois, entabular uma carreira profissional e carregar o fardo dessa enorme responsabilidade, daria muitos anos de terapia. Que nada, nem grana para isso tínhamos na época. Vai-se, então, vivendo. Deixando as emoções atravessarem brechas estreitas até encontrarem atalhos no curso. Ou não, embolando-se cada vez mais nas dúvidas e incertezas.


Só sei que brinquei muito com eles. Era parquinho, bicicleta, futebol e o escambau. Adorava contar histórias. Incorporava personagens. Criava, aumentava, docificava... Havia um ritual, em especial, que sentia, no brilho dos olhares, uma espécie de fascinação e deslumbramento.


Dizia. Não tenho medo dos animais ferozes. Sabe o que faço se um leão me atacar? Fico esperando - de pé abria as pernas em posição de defesa. Quando ele avançar, agarro vigorosamente sua juba com as duas mãos - e tremia os braços e fazia aquele olhar de enfrentamento ao felino com o pescoço contraído em veias pulsantes. Depois de dominado, eu giro, giro - gesticulava sincronicamente a descrição - e jogo laaaaá na África.


Perplexos com tamanha valentia, as crianças emudeciam. Antes que dissessem uma única palavra, continuava.


E se fosse um elefante? Esse era mamão com açúcar. Espero quieto enquanto ele vem em disparada. Quando estiver quase chegando, desvio o corpo, seguro sua tromba e depois rodo, rodo e solto. Sabe onde ele iria cair? Na África!


Teve uma vez que um jacaré quase me atacou. Eu estava deitado a beira do lago. Levantei-me rapidamente. Quando se aproximou e abriu sua bocarra, agarrei nas duas extremidades com arroubo. Os dentes afiados como lâminas quase me atingiram mas, bravamente, fui abrindo sua boca - imitava com gestos essa força enorme, tremia os braços e em um grito só fazia "track" - até quebrar sua boca e parti-la ao meio. Depois, arrastei seu rabo e girei, rodei, rodopiei e lancei-o na África.


As crianças adoravam e vez ou outra pediam para contar as histórias de pai herói. Inventava novas valentias, recriava novos personagens e imaginava outras bravezas.


Era mês de julho. Todos já adultos em uma viagem de férias, em família, para a Amazônia. Acomodados em um bangalô de palafita, na região do rio Solimões, ouvíamos, à noite, uma infinidade de sons próprios da floresta. Como uma orquestra de infinitos instrumentos, o barulho de minúsculos insetos se misturava ao tinido das árvores que pareciam falar entre si, em voz alta. Coisa mais linda!


Numa das noites saímos em um pequeno barco para a tal "focagem do jacaré". O caboclo à frente conduzia o barqueiro a navegar por entre igapós e penetrar rio adentro. Já estávamos bem enfiados no mato quando, de repente, de uma vezada só, ele, na rapidez de um bote de uma cobra, impulsionou sua mão para dentro da água e trouxe, de volta, um pequeno jacaré. Era filhote e não deveria ter mais do que uns quarenta centímetros. Dominou o bicho segurando com uma das mãos sua cabeça, já imóvel, e a outra o rabo. Docemente, movimentou-se em minha direção e disse:


- Senhor, por favor, segure o réptil enquanto eu remo para nos tirar dessa área antes que os pernilongos nos ataquem.


Não pensei duas vezes. Olhei para o pequeno crocodilo. Escutei o medo que me tomou. Tomei o remo nas mãos e disse.


- Pode deixar que eu remo, moço!


Tamanha foi a minha eficiência que em poucos segundos estávamos no meio das águas, livre dos insetos. Descobri naquele dia que, provavelmente devo ter sido canoeiro em outra encarnação.


Até hoje os risos escorrem soltos sobre as laringes e descem como gargalhadas de memórias infantis de um tempo de fascinação cravado na história, quando, nos encontros de família, esse caso é revivido.


Assim, a vida. Todo pai herói tem sua canoa de ceifar fantasias.


Imagem do post em <https://pin.it/4FdEyw8>


 

Gielton


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Meu pai tinha um jipe, daqueles antigos. Em julho íamos, às vezes, para Dores de Guanhães. Era um dia inteiro de viagem sacudindo no banco de trás. Nem ligava. Era tudo diversão!


Na fazenda da minha tia, éramos recebidos com cafés e quitandas à beira do fogão de lenha. Afetos de família guardados para sempre nos cantos mais profundo do coração. Ah, os primos e primas! Eram muitos. Rolavam até paixões infantis.


O barulho do caminhar firme dos adultos nas tábuas do casarão deixava rastros de pavor. Algo no campo do tenebroso. Nas madrugadas, quando o silêncio era o dono e o breu seu parceiro, sentia medo. Não havia diferença entre abrir ou fechar os olhos. Era tudo um escuro só. Ainda bem que os irmãos estavam por perto.


- Estou com medo...

- Feche os olhos e vai dormir.


A manhã afinal acontecia e, com ela, a luz. Sempre gostei do dia, desde novo. Hoje compreendo e acato. Passava o dia com o vaqueiro. Cedinho, no curral, observava as mãos leves puxando as tetas. No balde, a cada esguichada, avolumava-se a espuma do leite. Ofertava-me um copo. Descia quentinho goela abaixo. Fracassei no dia em que me aventurei a ordenhar. Nem pingos de leite gotejaram.


Separado o soro e doado aos porcos era hora de espremer com as mãos o leite talhado. Adorava pressionar sobre a forma e sentir, entre os dedos, o líquido grosso sendo expulso. Esse movimento dava vida aos queijos artesanais que nos alimentaria mais tarde.


A mula era arriada. Arreio de carga para trazer em seu lombo cana e capim. Ia junto. Admirava-me a destreza do peão com o facão. Movimentos certeiros rasgavam os pés das plantas enquanto a outra mão amenizava a queda. Lá íamos nós, a pé, com a mula carregada para a máquina. Nusga! Como era barulhenta. Silenciava minha curiosidade. Só via cana e capim virarem pó. Alimento para o gado em tempos de seca.


Ficava triste quando, por qualquer motivo, não podiam selar um cavalo para mim. Aguardava ansioso meu tio, de cima da varanda, com pose de dono, ordenar.


- Pedrinho, busque o cavalo para meu sobrinho.


Era meu. Quase exclusivo. Dividia um pouco com meus irmãos, mas o fissurado era eu. Montava, ia até a ponte e voltava. Desmontava. Brincava de faroeste. A felicidade resplandecia quando meu primo, bem mais velho, me convidava para ir à rua. Nós dois, cada um em seu cavalo, e eu me sentindo o cavaleiro. Sabia que não, pois pulava que nem cabrito em cima daquela cela. Ele dizia: você tem que sentir e acompanhar o ritmo do animal. Sei...


Já grandinho, um dia, meu tio diz.


- Pedrinho está ocupado. Você mesmo pode buscar o cavalo. Está ali - apontou na direção do morro ao lado da casa grande.


Na pressa, desci as escadas, peguei o cabresto e parti. Abri porteira. Desci a trilha. Subi o morro. Lá estava ele. Aproximei. Ele afastou. Cheguei de novo. Andou mais para trás. Resolvi toca-lo, não no sentido físico da coisa. Era para conduzi-lo. Foi em direção à porteira. Oba, vai dar certo! Mais rápido que eu, desviou para o outro lado. Contornou o morro. Pensei: danado me enganou. Fui por trás. Toquei de novo. Contornou para o outro lado. Repeti. Já exausto tentei mais uma vez e outra mais. O equino fez a maior hora com a minha cara.


Derrotado pelo animal voltei com cara de tacho. Acabrunhado tive que aguentar a gozeira do pessoal. Deixei o choro no pasto. Disfarcei minha falta de graça. Arrumei desculpas para compensar.


Assim, a vida. Para cada cavalo, um cavaleiro...


Imagem do post em <https://pin.it/41Fv6pH>

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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