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Atualizado: 17 de jun. de 2020

Gielton



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Desde tacanho algumas coisas me fascinavam, sem motivo aparente. Esses registros de memória são antes dos oitos anos - isso em mil novecentos e tantos. Nunca fui muito fã de animais, tinha medo até de galinhas. Uma vez, correram atrás de mim lá na fazenda da minha tia em Dores de Guanhães. Gatos, nem se fala. Para mim, estavam sempre prontos a atacar. Aquele jeito cabreiro acompanhando nossos movimentos de olhos antenados, captando cada detalhe. E se pula em cima de mim com suas unhas afiadas a me rasgarem? Os cachorros são mais gentis. Aceitam carinhos. Mas, só depois de acostumar com o bicho. Idolatrava os cavalos. Como os admirava! Não sei se pela força impressa dos músculos à vista. Talvez pela imponência e altivez. Quem sabe, pela amabilidade em nos aceitar em seu lombo. Zorro era das minhas séries de TV favoritas, ainda em tons de cinza. A trama era confusa, mas aguardava ansiosamente o desfecho. Sabia do fim quando o herói, em sua capa preta, empinava o garanhão. Era o gesto do triunfo. Plagiava o paladino com uma toalha amarrada no pescoço e uma espada de papelão. Gostava de automóveis. Mais da condução do que da máquina em si. Aprendi, ainda muito criança, os movimentos dos pés nos pedais, mãos no volante e alavanca de marcha. Tudo no reparo em detalhes dos motoristas. Imitava meu pai no banco do passageiro. Até olhava o mundo para trás no retrovisor da Kombi de vez em quando, como se fosse, de verdade, fazer alguma conversão. Lembro-me de, deitado com a face colada ao chão, empurrando carrinhos e contemplando o giro das rodas. Como podem rodar desse jeito? A espécie de fluxo contínuo, sem início, meio e fim, me deixava atordoado de tanto mistério. Pelejava para acompanhar o rodeio, mas me embaralhava todo tentando encontrar o fio da meada. Estirava de barriga para cima na sacada do apartamento no centro da cidade. No vão entre a mureta e o teto contemplava o céu azul. Nuvens moviam-se rente ao topo do prédio. Regozijava de prazer com a sensação de cair, uma espécie de tombo. Como se o edifício e tudo junto fosse lentamente abaixo até deitar sobre a avenida. Nas primeiras vezes tive medo. Depois me acostumei. Era gozo puro. "Huuuuu... Estou indo... Caindo, caindo..." mas nunca caía. Então, flutuava. Adorava alguns sonhos. Corria até o alto de uma colina e me jogava. Em câmera lenta planava no ar como um albatroz. Literalmente voava até tocar suavemente o chão, correr de novo, pegar o embalo e subir... Acordava em êxtase. O desejo era continuar em levitação de alma. Permanecer no mundo leve. Um mundo sem pressões e amarras. Tinha também meus pensamentos malucos. Certa vez, conversavam em casa sobre acidentes de avião - acho que havia acontecido recentemente no Rio de Janeiro - meus primos e parentes diziam dos medos de voar. Era o medo da morte rondando, aproximando, mesmo à distância, na dor dos outros. Comigo e em silêncio, afirmei categórico e seguro: para que ter medo de avião! Se um dia andar de avião, não terei medo algum. Estando lá no alto, se suceder uma pane, ergo calmamente do assento e caminho até a porta. Peço ao motorista para abri-la. Então, quando o avião estiver pertinho do chão, pulo e saio andando. Mantive esse segredo por anos a fio! Até hoje.


Assim, a vida. Tempos de criança que não voltam mais...


Imagem do post <https://pin.it/1R5TwsA>

 

Atualizado: 14 de out.

Gielton


Nó em um arame


O que te fazia sentir adulto aos sete anos?


Foi nessa idade que ingressei no grupo escolar. Via pelo retrovisor da vida a inocência do jardim de infância se afastando. Agora galgaria outros degraus. Coisa séria de gente grande. Até parece! Fora minha dificuldade com a ortografia, até que me dei bem nessa nova fase.


Não me abalei com a vastidão do Francisco Sales. Depois do saguão, uma área aberta rodeada por salas de aula dava o tom da imensidão. Pilares em alto-relevo sustentavam o telhado cujo beiral avançava para dentro do grande retângulo central. Em tempos de chuva seguia pelo corredor, fazia a curva lá na frente para ir ao banheiro. Nada que um menino esperto, com boa visão espacial, não aprendesse rapidamente.


A jardineira listrada deu lugar ao short azul-marinho. A camisa branca de botões, por dentro da bermuda, sombreava o ar de seriedade. O sapato preto e as meias da mesma cor alcançando os joelhos, compunham a aparência de retidão. Além do uniforme ultra bem passado, minha mãe penteava meu cabelo encaracolado para o lado, como se fosse possível domá-lo. Saía de casa um brinco.


A merendeira vermelha com orifício para a garrafa de suco herdei do jardim de infância. Ganhei uma maleta com alça e fecho de fivelas, além dos lápis de cor, da régua, da borracha e dos cadernos. Estes últimos, primorosamente encapados pela minha mãe. Impressionava-me sua habilidade em cortar o plástico, dobrar os cantos e colar o durex. Ficava lisinho, sem rugas, como minha pele.


Meu pai era quem me conduzia logo depois do almoço. De casa até o ponto de ônibus era um pulinho. Ele acenava. A lotação parava. Ouvia o chiado da porta traseira se abrindo. Minha perna mal alcançava o degrau. Subia segurando-me nos corrimãos. Algumas vezes passava debaixo da roleta, outras, formava um corpo único com meu pai para atravessá-la. Havia um decreto tácito: "criança não paga".


Quase sempre escolhia a janela. Mas logo me punha de pé com o rosto colado no encosto do banco da frente. Viajava na paisagem. Pessoas transitando entre lojas, algumas muito famosas, como a Mesbla e a Galeria do Ouvidor. Carros espremidos entre ônibus. Motocicletas tirando fina. Uma confusão de pedestres...


Atentava-me preferencialmente ao interior. Encantava-me o trocador. Não sei por quê, mas considerava nobre sua profissão. Nada a ver com o dinheiro que recebia. Talvez por sua visão privilegiada.


Admirava o motorista que, a cada parada, acionava o sistema de abertura das portas. Em movimentos bruscos e coordenados mexia a alavanca das marchas a todo instante. Ficava pensando, "quanto domínio!"


O volante, maior que seus braços, exigia esforço para girar. Era preciso vergar o corpo e firmar os pés para manter o veículo na curva. Tudo muito concatenado... O motorzão no meio era estupendo, apesar de barulhento.

Quando posto a funcionar, o limpador de para-brisa me hipnotizava. Ficava paralisado vendo a borracha deslizar sobre o vidro em um vai e vem lento, arrastando gotículas e desanuviando as vista. Fantástico!


Ao lado, meu pai apontava destaques pelo caminho: "Olha, essa aqui é a Amazonas". Com pouco tempo, dominei o trajeto. Descíamos no segundo ponto depois do JK. Aí, era só atravessar a rua.


Minha mãe quase matou o meu pai quando ele revelou que havia me deixado ir sozinho para a escola. "Você é doido? Ele é uma criança!" Sentia-me digno da confiança do meu pai e seguro da minha capacidade. Sabia exatamente o ponto de descer. E no mais, atravessar a rua não era problema — havia sempre um guarda garantindo a passagem dos estudantes.


Mas tinha um medo que nunca revelei. Quase pavor que me perturbava como uma turbulência em pleno voo: e se ninguém puxasse a cordinha para acionar o sinal de parada? Ela era alta — mesmo esticando ao máximo, meu braço não a alcançava.

Em pé, perto da porta, calculava quem esticaria a cordinha — um suspiro de esperança a cada rosto que mudava de lugar.


A espera parecia não ter fim até o último segundo quando alguém se levantava, segurava a cordinha e, para alívio da aflição, soava o "peeennn".

Os ombros relaxavam. A tensão se dissipava. O medo? Esse, sim, voltaria no dia seguinte junto com o arruído do amanhecer da cidade.


A vergonha, como um caracol em sua concha, jamais sairia de dentro para suplicar: “Por favor, você poderia dar o sinal para mim?” Quantas vezes ensaiei… Quantas vezes estive à beira de pronunciar… Era como se um nó na garganta travasse a voz.


Tive a sorte de ter um anjo da guarda de plantão sempre cuidando de mim. Ele nunca faltou!


Assim, a vida. Crescemos, mesmo sem saber.

 
  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Atualizado: 11 de mar. de 2020

Gielton

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Eram quase dez da manhã. Da varanda do apartamento no centro da cidade a rua se mostrava aos seus olhos atentos. Bel Airs, Aero-Willys, Vemaguets, kombis e fuscas se entrelaçavam na principal avenida da cidade, a Afonso Pena. Engraçado, como as coisas mudam! Ele tinha pouco mais de dois anos e livremente debruçava-se sobre o beiral da varanda. Nada de telas de proteção, armadilhas de aprisionamento. Quanta confiança havia naquele tempo.

A mãe atarefada circulava dentro de casa. Trabalho duro. Dos quartos para a sala vinha como um furacão recolhendo chinelos, pijamas, travesseiros... Tudo em ordem num quase piscar de olhos. Quanta habilidade, quanta eficiência!

Enquanto o corpo movimentava, a mente agia. O cardápio do dia era pensado em meio a essa assoberbada manhã. Como as linhas da palma da mão conhecia as prateleiras da geladeira. Tinha preferência pelo bife passado em duas frigideiras. Especialidade da casa que vivia cheia de parentes vindos do interior. Moravam para estudar. Seriam futuros doutores.

Em um átimo, ao adentrar a sala, a mãe vê o bico do bebê em queda da sacada do terceiro andar. Como em câmara lenta, ele rodopiava no ar, deixando ora a argola virada para baixo, ora para cima, enquanto descia movido pela gravidade. Quase no mesmo tempo a mãe pensou e agiu. Desceu as escadarias numa correria danada. Chegou na calçada de pedras portuguesas com desenhos geométricos quase junto da chupeta.

Recuperada, pensou. Na mesma rapidez de raciocínio entrou na drogaria duas lojas à frente e comprou outra chupeta. Dessa vez, na cor azul. É só para garantir, avaliou internamente.

Botou as duas para ferver. Enquanto ouvia o borbulhar da água na panela labutava um pouco mais. Tempo perdido, trabalho dobrado. Cinco xícaras de arroz no escorredor, água no feijão para cozer, couve dentro da pia... Tudo ao mesmo tempo, sobreposto em simultaneidade.

O chiar da panela de pressão preenchia o apartamento. Foi até a sacada e ofereceu o bico verde ao filho. Recusou. Tentou novamente. Nova recusa.

Durante a refeição relatou a manhã para o marido. O pai, então, depois do café, abaixou-se no mesmo nível do filho único do casal e lhe entregou o bico azul. Ele olhou para a chupeta, tomou-a em sua mão direita e destrambelhadamente a jogou no chão.

Assim, a vida. Essa criança sacou que não precisaria mais de bico para se acalmar?

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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