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    Gielton

Atualizado: 25 de ago. de 2022

Gielton




Sabe aquele cara metido? Isso, metido a besta? Pois é, sou eu... Arrogante, presunçoso, soberbo, prepotente, e um monte mais de outros adjetivos. Vai vendo...


Nossa primeira viagem para o exterior foi para a Bolívia, povo vizinho. Não sabia nada das suas tradições, do jeito de ser, da cultura. Vixe, muito menos da língua. Uma palavrinha sequer em espanhol. Tudo bem, dizem que é fácil aprender. Para mim então, vou tirar de letra!


Era dia ainda. Estava sentado na cadeira do corredor do ônibus a caminho de La Paz. O sujeito do lado se volta para mim e diz algo. Levei um susto! Não compreendi bulhufas! Nada, nada... Não fazia ideia nem do assunto! Encolhi os ombros e abri as palmas das mãos. Ele entendeu o gesto! Virou-se para o lado e me desprezou. Pensei: tô fudido! Aliás, como se fala essa expressão em espanhol?


Entrei "numas"! A cena do ônibus cutucou minha hombridade. Não deixarei por menos. Só saio daqui "hablando" na língua do povo.


Estiquei meus ouvidos a uma atenção descomunal. Aprendi a pedir "puedes hablar más despacio, por favor?" (você pode falar mais devagar, por favor?). O dicionário de bolso - papel mesmo, naquele tempo não tínhamos Internet como hoje - tornou-se fiel companheiro. Nos quartos de hotel, a TV sempre estava no mais alto do volume. De frente, me concentrava para entender o noticiário.


Percebi que ganhava atenção e cuidado quando mostrava interesse pela língua nativa. Perguntava: "como se dice" e apontava para algo, ou tentava um parco portunhol da palavra ou expressão duvidosa. Sentia-me acolhido. Os vendedores, garçons e até transeuntes eram quase sempre muito receptivos.


Com minha mulher levantava hipóteses. Como será que se diz em espanhol "vamos atravessar a rua"? Deve ser algo do tipo "vamos proceder la travessia". Gargalhávamos do "chute" bem dado que não trazia certeza de nada.


Me achava o máximo. A certa altura minha língua se soltou. Era quase como se não precisasse pensar muito para dizer algo. Se o comunicado saísse do eixo, o interlocutor corrigia o ângulo indicando pronúncias.


Um dia, admirando as centenas de fotos da viagem, brinquei com ela.


— Nossa, como sou fotogênico! Fico bem demais nas fotos...


Veio a dúvida: será que existe a palavra fotogênico em espanhol?


— Claro que não!


Afirmei com convicção. Na minha mente seria uma palavra muito específica, muito própria do português. Fotogênico em espanhol deve ser algo como "el bonito da foto"...


Perguntamos ao garçom, lógico, na pronúncia correta (fotorrênico). Ele respondeu prontamente algo como;


— Hay si, el que se acha, el que se tira de artista...


Nossos olhares se encontraram em um riso só! Era euzinho, o fotorrênico, o metido da parada.


Assim, a vida!


Imagem do post em <https://pin.it/64Njeih>


 
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Atualizado: 14 de set. de 2022

Gielton




Quando minha irmã nasceu eu era o caçula há quase três anos. Sexo antes do parto? Não existia. Ultrassom? Só na teoria. Quando "desapartou-se" fez dos pais reles agraciados. Tanto queriam uma menina! Ela escorregou dos céus.


Pele clara de olhos azuis, como o meu pai, os cacheados do cabelo entoavam-lhe um charme especial. Não eram cachos longos caídos sobre os ombros, mas fios que se enrolavam um no outro deixando a cabeleira amarela cheia de murundus como finas molas que distendiam e contraiam quando puxadas.


Encantadora! Em pouco tempo se tornou o "xodó" do papai. Os privilégios eram muitos, lógico, aos olhos dos irmãos. O colo do pai era seu trono de princesa. Nós, os dois marmanjos plebeus, assistíamos a TV amontoados no sofá, disputando a pontinha do ciúmes.


Eu adorava alguns seriados. Dava altas gargalhadas com "Os três patetas". Me emocionava todas as vezes que "Nacional Kid" salvava a Terra de algum inimigo. Era louco com cavalos e seus galopes nos "faroeste". Mas, o que mais gostava era do Zorro com seu alazão preto que sempre empinava ao final de cada história.


No Natal, ganhei a capa preta, a máscara e a espada do herói dos pobres. Subia muros, pulava tamboretes, arrastava cadeiras em fantasias de lutas com o sargento gordo que nunca me capturava. A irmãzinha admirava minha agilidade e via seu herói salvando os pobres e desfavorecidos. Gentilmente a acolhia. Na maioria das vezes eu, Dom Diego de La Vega, ela Lolita, a eterna apaixonada pelo homem mascarado, fantasiávamos no quintal de casa, embrenhados no milharal. Éramos companhia um para o outro.


Brincar de casinha, só em casa, distante dos olhos alheios. Vergonha. Proibição para meninos. Porém, na intimidade do lar fazia de médico, professor ou motorista de ônibus. Ela era a "patroa". Cuidava de suas bonecas, fazia o almoço e, às vezes, era a enfermeira. Raramente invertíamos os papeis!


Um dia, ao atender a campainha, estranhei o "cara de pau".


— A Ana está?


Tive que me acostumar com os namorados!


Assim, a vida! De repente, a menina tornou-se mulher.


 
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Atualizado: 22 de set. de 2022

Gielton





O sábado de Carnaval foi espinhoso. O físico doía, não tanto. Certo mal-estar deslizava o corpo desfalecido. O vírus da Hepatite intrometeu-se entre ele e a festa e o retorno de Diamantina foi longo, uma demora sem fim. No rastro do pensamento esvaziado vinha a tristeza, espalhando-se como a calda de um cometa.


Acolhimento foi o sentimento ao pousar em casa. Já o esperava uma cama limpinha de lençóis quarados ao Sol. O ferro quente certamente passara por cada quina, por cada fio. Estava liso como uma plaina. Perfumado como campos de lavanda franceses.


Espatifou-se sobre o leito. Adormeceu.


Seguiram-se os cuidados por quarenta e cinco dias. O esmero da mãe não deixou faltar uma gota sequer do chá de picão. Como em um hospital, sal e óleo passaram longe do fazer culinário. A falta de graça do alimento era compensada pelo amor enlaçado. Não adiantaria reivindicar sobre as ordens médicas. Essas foram cumpridas à risca, com o rigor que ele merecia.


Aos vinte e poucos a desolação se dilatava diante da solidão. Dia após dia, tendo apenas a cama como companheira, fez-lhe confidências inimagináveis. Com ela reclamava.


— Tudo bem que a doença é contagiosa. Mas, nenhuma visita? Nenhum amigo para acalentar?


A saída foi desamar. O coração doído conduziu pensamentos em círculos. A lógica do sofrimento é incompreensível. "Então, tá... Não preciso de vocês. Posso dar conta do recado em mim mesmo".


Debruçou-se sobre Nikolai Piskunov. Afinal, era estudante de Física e precisava seguir seus estudos. Destrinchou o cálculo de séries infinitas, polinômios de "n" variáveis... Aprendeu linguagens... Descobriu um mundo de cem dimensões e possibilidades dentro de si.


Só que, a cada fórmula aprendida uma volta a mais era dada à tranca de seu coração. Recostado à cabeceira da cama encontrava soluções matemáticas pouco válidas para o pulsar frio das artérias. Enquanto isso, ressentimentos escondiam-se por dentro do tórax. Endurecidos, ali permaneciam entocados. Sem saber, aplicava à alma a lógica da álgebra impondo a razão e solidificando a ternura.


Alcançou "A" em todas as disciplinas do semestre. As excelentes notas deram-lhe a ilusão do sucesso.


Findou o ano com o coração enferrujado. Oxidado pelo excesso de pulsação fora do ritmo.


Assim, a vida. Em cada lance, uma jogada!



Imagem do post em <https://pin.it/3s6Uvf5>



 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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