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  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Atualizado: 22 de set. de 2022

Gielton





A juventude pulsava. O desejo de ser feliz era inegociável. O coração sedento por amor buscava outro que vibrasse em sintonia. Ainda não sabia, mas era cedo. Experiências para colocar ordem na casa estavam por vir.


O carnaval prometia. Era seu segundo fora de casa. A liberdade de estar longe da família e perto dos amigos ocupava o vazio da autonomia. No entanto, nem tudo era como as aparências refletiam.


O pequeno bloco carnavalesco esculpiu em silkscreen a camisa da resistência. O tom vermelho forte estampava em branco no design Coca-Cola a mensagem: Beba Cachaça. O contorno da letra assemelhava-se ao rótulo da multinacional. Ele nem gostava da aguardente propagandeada. No entanto, achava bonito criticar o capitalismo. Mal sabia que nas entrelinhas dava voz à tal bebida de fórmula guardada a sete chaves. Corria nas veias a esperança de uma civilização mais justa, mais fraterna, mais cooperativa. Doce ilusão?


Mas, afinal era carnaval. Tempo de ser feliz. Ou apenas fingir? Tempo de alegria. Disfarce no tom bêbado do sorriso? Desejo de envolver as garotas, seduzir, pegar! A aposta era quanto ao número de beijos e ficadas em uma noite. Ganhava quem colorisse os lábios com mais batons. Tolices!


O desconforto entre um clamor íntimo da alma e as urgências sociais zonzeavam sua essência. Algo lhe dizia: vim em busca de uma única mulher! Do outro lado da rua a turma lhe convidava para mais uma rodada. Diga-se, em pleno café da manhã. Tanto por tão pouco!


À noite perambulava pelos calçamentos de pedras lisas da famosa cidade histórica. Torteava becos, elevava-se em ladeiras, escorregava em declives. Tambores, batuques, blocos levavam multidões consigo. Ele, desnorteado, seguia um rumo de metas foscas. Enquanto isso, mesmo sem saber o porquê, o "Beba Cachaça" abria-lhe portas para moças. Umas mais, outras menos, bonitas. Isso importava.


O nó entre a alma e a existência apertou. Um simples biscoito Cream Cracker era tão indigesto quanto uma feijoada. Nada lhe acomodava no estômago. Era como se a indigestão da vida não lhe desse trégua. O mal estar do corpo refletia a insatisfação da alma. Uma pinga com mel descia goela abaixo maltratando a dignidade.


Já em profundo sofrimento veio o resultado do exame: Hepatite. Tudo explicado. Os cuidados exigiram o retorno para casa bem antes da quarta-feira de cinzas.


Consternado, ignorava a paisagem da janela do ônibus. Em outra parte: alívio. Ainda bem. Salvo pelo fígado!


Hora de regar seu jardim. Reconhecer suas flores. Tratar a terra interior.


Assim, a vida! Muito de tudo parece o que não é!


Imagem do post em <https://pin.it/4gcyOwq>




 
  • Foto do escritor: Gielton
    Gielton

Atualizado: 8 de dez. de 2022

Gielton


HOLERITE





Montava seu cavalo. Forte, musculoso, bem tratado. Havia, a pouco, cruzado a porteira que ainda rangia ao fechar. O fino som da dobradiça enferrujada se misturou ao estalido. Sentiu a fisgada e caiu a poucos metros da sede da fazenda.


Foi uma emboscada? De onde partiu o tiro? Disputas territoriais? Perguntas que orbitaram minha cabeça de criança por anos.


Via aquele senhor de braços fortes sentado na cadeira de rodas jogando truco com amigos. Parecia tão adaptado à sua condição de cadeirante. Da varanda da casa em Sete Lagoas administrava tudo. Contas, banco, gado, leite, obras... Criaram, ele e sua mulher, sete filhos, todos doutores e doutoras, hoje. Exemplo de força mental.


A recuperação da bala que atingiu a ponta da coluna vertebral foi longa. Corre corre até o hospital, enquanto o sangue jorrava em esguichos. Internou-se na capital por meses. Tempo de demora. Tempo de espera.


A graciosa irmã mais nova, em pleno vigor da juventude, o acompanhou por diversas vezes no hospital. Assim, dividia, entre os ombros, o pesado fardo que a cunhada carregava. Além do marido entre a vida e a morte, os filhos pequenos careciam cuidados.


Destinos foram feitos para se cruzarem? Há quem acredite. Outros, nem tanto. Alguns, duvidam. Só sei que, desde a primeira visita, seus olhos se encontraram. Brilharam um para o outro. Ela, a irmã do ferido. Ele, o cunhado.


O triste cenário do momento constrangia. Afinal, não seria muito digno se apaixonar diante de circunstâncias tão delicadas. Só que o amor não mede distâncias, não liga para acasos, pouco se lixa para protocolos. Às vezes, ele, simplesmente, invade. Toma seu lugar e se instala nos corações.


Incrivelmente os dias de visita coincidiam. As conversas à porta do quarto alongavam-se. Os desejos se reuniam em movimentos de falta de graça, até o primeiro convite para a matinê. O filme era em preto e branco, mas a emoção de estarem lado a lado e o suave toque das mãos, coloriram suas áureas. Os tons acalorados entrelaçaram-se.


A cada palpitar frenético de um novo encontro crescia o prazer de estarem juntos. As visitas ao enfermo, agora eram combinadas e sempre vinham acompanhadas de um sorvete ou um cafezinho no Café Nice. A intimidade crescia. A falta de graça escondia-se por trás da confiança. O namoro aceito pela família alargou caminhos.


Naquele dia, ele viveu um dos maiores dramas da sua vida. Penteou-se. Perfumou-se. Treinou diante do espelho palavras bonitas em versos de Fernando Pessoa. Por via das dúvidas dobrou o documento no bolso. Na hora H, com o coração pulando pela boca, a face corada e a mão trêmula, esqueceu-se dos ensaios, puxou seu holerite, mostrou e disse:


— Topas!


Cinco anos depois eu nasci.


Assim, a vida!


Imagem do post em <https://pin.it/3MLJlT6>

 

Atualizado: 3 de mai. de 2023

Gielton



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Estávamos apaixonados apesar do pouco tempo de namoro. No entanto, já nos conhecíamos há uns bons meses. Ah, uma longa história!


Sabe aquela amizade que vira namoro? Era o nosso caso! Eu, feliz como um pássaro pela manhã "pirulitando" de galho em galho. Cantando como para encantar a fêmea e se mostrar possuidor das melhores virtudes, topava tudo. Até a deixava retirar cravos em minha face. Ela, de olhar para frente, cultivadora do encontro, construtora fiel do amor, amassadora do barro da esperança, sugeriu nosso primeiro acampamento.


Atirada aquela mulher. Obediente aquele homem. Mal sabíamos o caminho... Uma tal "Serra da Moeda". Ali. Pertinho de mineiro. Algumas poucas léguas do centro da cidade.


A sacola, dessas grandes, tipo enormes, de plástico listrado em tons de azul e fechecler, foi abarrotada. Levamos, imagine só, um saco de cinco quilos de arroz! Haja inexperiência!


Viagem curta. Da janela do ônibus, abraçadinhos como gato e gata, apreciamos as curvas em forma de serpentes, das montanhas de minerais em terra vermelha e horizontes infindáveis.


— Por favor...


Ela interpelou o primeiro transeunte logo no desembarque e continuou...


— Você sabe a direção do Morro dos Veados?


O sujeito virou-se. Mesmo com a luz do Sol ofuscando nossas vistas, apontou para um lado da serra e completou.


— Peguem aquela estradinha, subam até o primeiro mata-burro e verão um descampado. Entrem nele, passem pelo campinho e sigam a trilha. Logo depois é o mirante.


Pensei, vai ser foda. E foi! Duas mochilas pesadíssimas às costas, uma barraca para cinco pessoas pendurada em um ombro, uma sacola de plástico repleta de enlatados, sacos de feijão, arroz e o "diabo"... A subida do morro foi exaustiva. Éramos jovens, mas o preparo físico... E para achar o tal Morro dos Veados... Pergunta daqui, vai para lá, volta na estrada, entra na trilha errada!


Finalmente alcançamos! O entardecer já se manifestava quando escolhemos um pequeno platô sobre a grama para armarmos nossa barraca. Nem sei como ficou de pé. Os piquetes mal penetravam a terra mineralizada.


Pronto! Depois daquele sufoco nos deitamos para curtir a aventura. A vela sobre a caixa de fósforo ao canto trazia alento. Como duas colheres, nos encaixamos e, fatigados, adormecemos.


Em plena madrugada, incêndio! Acordamos esbaforidos com a chama tomando o "sleeping bag". Em um ato de puro reflexo saímos da barraca, puxamos o colchãozinho para fora e abafamos o fogo. Aquele estava perdido. Esturricou. Quanto susto! Hoje sei que fomos salvos por anjos que nos rodeiam.


Amontoamos em um só sleeping. Não foi problema, pois tudo o que queríamos era ficarmos grudados um ao outro.


Amanheceu! Primeiro cocei o calcanhar. Estranho. Senti depois na barriga. Ela, do lado, reclamava de estar com o pescoço pinicando. Mas, que diabos acontece? Pequenos inchaços na pele mostravam algo que não víamos.


De fora da barraca, mal conseguíamos ocupar as mãos em pães, leites, achocolatados, para alimentar a fome matinal. Os dedos buscavam a todo instantes partes do corpo que não paravam de titilar.


Na trilha, ao lado do nosso acampamento, a senhora ao ver o coça-coça desesperado, avisa.


— Vixe, vocês colocaram a barraca em cima de um ninho de carrapato, daqueles bem miudinhos!


Assim, a vida! Haja carrapatos para se coçar!


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Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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