HOLERITE
- Gielton
- 2 de set. de 2021
- 2 min de leitura
Atualizado: 8 de dez. de 2022
Gielton
HOLERITE
Montava seu cavalo. Forte, musculoso, bem tratado. Havia, a pouco, cruzado a porteira que ainda rangia ao fechar. O fino som da dobradiça enferrujada se misturou ao estalido. Sentiu a fisgada e caiu a poucos metros da sede da fazenda.
Foi uma emboscada? De onde partiu o tiro? Disputas territoriais? Perguntas que orbitaram minha cabeça de criança por anos.
Via aquele senhor de braços fortes sentado na cadeira de rodas jogando truco com amigos. Parecia tão adaptado à sua condição de cadeirante. Da varanda da casa em Sete Lagoas administrava tudo. Contas, banco, gado, leite, obras... Criaram, ele e sua mulher, sete filhos, todos doutores e doutoras, hoje. Exemplo de força mental.
A recuperação da bala que atingiu a ponta da coluna vertebral foi longa. Corre corre até o hospital, enquanto o sangue jorrava em esguichos. Internou-se na capital por meses. Tempo de demora. Tempo de espera.
A graciosa irmã mais nova, em pleno vigor da juventude, o acompanhou por diversas vezes no hospital. Assim, dividia, entre os ombros, o pesado fardo que a cunhada carregava. Além do marido entre a vida e a morte, os filhos pequenos careciam cuidados.
Destinos foram feitos para se cruzarem? Há quem acredite. Outros, nem tanto. Alguns, duvidam. Só sei que, desde a primeira visita, seus olhos se encontraram. Brilharam um para o outro. Ela, a irmã do ferido. Ele, o cunhado.
O triste cenário do momento constrangia. Afinal, não seria muito digno se apaixonar diante de circunstâncias tão delicadas. Só que o amor não mede distâncias, não liga para acasos, pouco se lixa para protocolos. Às vezes, ele, simplesmente, invade. Toma seu lugar e se instala nos corações.
Incrivelmente os dias de visita coincidiam. As conversas à porta do quarto alongavam-se. Os desejos se reuniam em movimentos de falta de graça, até o primeiro convite para a matinê. O filme era em preto e branco, mas a emoção de estarem lado a lado e o suave toque das mãos, coloriram suas áureas. Os tons acalorados entrelaçaram-se.
A cada palpitar frenético de um novo encontro crescia o prazer de estarem juntos. As visitas ao enfermo, agora eram combinadas e sempre vinham acompanhadas de um sorvete ou um cafezinho no Café Nice. A intimidade crescia. A falta de graça escondia-se por trás da confiança. O namoro aceito pela família alargou caminhos.
Naquele dia, ele viveu um dos maiores dramas da sua vida. Penteou-se. Perfumou-se. Treinou diante do espelho palavras bonitas em versos de Fernando Pessoa. Por via das dúvidas dobrou o documento no bolso. Na hora H, com o coração pulando pela boca, a face corada e a mão trêmula, esqueceu-se dos ensaios, puxou seu holerite, mostrou e disse:
— Topas!
Cinco anos depois eu nasci.
Assim, a vida!
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