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Desde a viagem a Ibiá nos tornamos amigos inseparáveis. Ela e eu, eu e ela. O fixo era nosso ponto de partida. Dele combinávamos encontros, horários e lugares. Tudo funcionava bem sem celular. Nem relógio de pulso me permitia. Odiava "babilaques" pelo corpo. Para saber as horas? Pergunte a qualquer transeunte. Ainda fazem pose girando levemente o braço até que os ponteiros mirem os olhos. Uma bobagem!


"Canto Latino" era o barzinho predileto. Música boa, cardápio factível, amigos em todos os cantos e para todos os contos. A taça de vinho a granel era o melhor custo benefício, apesar de não apreciar nem tinto, nem branco. Fazia companhia. Disfarçava. Dali, partíamos a pé. Sem rumo. A destinos incertos. Um trivial caminhar pelas madrugadas ao seu lado era impulso de resplandecência interna. Minha luz se deleitava.


Sábados e domingos eram sagrados. Sempre arrumávamos o que fazer. Senão, um mero sorvete na Praça da Liberdade. Os assuntos corriam soltos como águas de um córrego. Manso, sem turbilhões ou redemoinhos. Reparávamos um no outro. Humores, bons ou maus, se revelavam. Escutávamos corações. Ouvíamos mentes. Era muito mais do que sintonia. Era alma. Não sei como, mas sabia.


O drama do grande amor dessa vida perdurava. Estava ali na minha frente. Convivia de perto. Tinha certeza, mas faltava coragem. O espaço entre nós tinha um limite. Ela o delineava em traços sutis. Falhas no esboço eram corrigidas antes que o tempo permitisse escape. Talvez fugisse de si mesma.


Era um sujeito partido ao meio. A honra de ser seu melhor amigo não escurecia o desejo maior. Queria mais. Queria amá-la como mulher. Queria tê-la em meus braços. Beijá-la sem restrições. Sentir entregas e desejos. Sonhava...


Naquela noite, sozinhos em uma esquina qualquer, depois de ensaiar por dias em frente ao espelho, tomei um gole de coragem e abri o verbo.


- Lelê, tenho uma coisa muito importante para lhe dizer.


Sua feição pouco alterou. Talvez minha ênfase não tenha sido convincente.


- Eu gosto muito de você...


Esperta na leitura do momento interrompeu:


- Eu também te gosto muito. Você é meu melhor amigo!


Desviou o assunto como se dobra uma esquina. Contornou meus dizeres embromando a si mesma. Disfarçou de si o que estava bem diante de seus olhos. Tangenciou como quem balança a cabeça para não sentir.


Perplexo comigo, silenciei. Sem ação, paralisei. De susto, internei. Nessa noite, chorei.


Assim, a vida! Há tempo certo para choros e risadas.


Imagem do post em <https://pin.it/51rlX7K>

 
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Lila era linda. Contando histórias, então, nem se diga. Emanava-lhe uma atração hipnotizante. Seus olhos faiscavam força, leveza e pureza espiritual. Estávamos, uns quatro ou cinco, em torno dela na livraria do DCE, e toda minha atenção voltada a ela. Claro que não me via como a via. Aliás, nem sei se me enxergava. Apaixonei-me outra vez. Porque isso sempre acontece comigo? Estaria minha alma perdida no meio do oceano aguardando uma boia salvadora?


As vidas cruzaram. Lila era íntima da amiga de um grande comparsa: Carlos. Aliás, a comemoração dos anos dessa amiga em comum seria no interior das Minas Gerais. Dei um jeito de ser convidado. Meu coração encheu de esperanças. Quem sabe, eu engato essa nova paixão. Sonhei platonicamente com declarações melodiosas, meigos beijos, suaves toques de mãos entrelaçadas e afagos no contato íntimo das palavras. Quem sabe? Seria a Lila meu grande amor?


Carona era o meio de transporte dos que tinham pouco dinheiro mas queriam curtir a vida, como nós. O trevo de Betim foi o ponto de encontro. Desci da lotação, meio esbaforido, apressado e atrasado. Carlos já estava a me esperar. Estremeci ao ver, ao seu lado, aquela garota que, em uma festa, meses antes, dançava rodando a saia indiana. Nos reconhecemos de imediato e a memória afetiva daquela longa conversa de boteco sobre a viagem ao Nordeste exalou. O coração quase pulou para fora de tanta força que fez ao bombear paixões do fundo da aorta.


- Essa é a Lelê e vai conosco de carona.

Apresentou Carlos.


- Olá Lelê. Lembro-me de você.


Eu disse, meio desajeitado, com medo dela não me reconhecer.


- Lembro também. De uma noite. Fizemos a mesma viagem e não nos encontramos, não é?


Ela lembrou de mim, pensei aliviado.


As mochilas, bem leves - afinal era um passeio de fim de semana - foram às costas, enquanto o polegar esticado com a mão fechada balançava livre ao vento.


Parou uma Mercedes amarela com um motorista super boa praça. Lelê, apertada entre eu e Carlos, tornou-se nossa grande atração, no sentido de seduzir nossos olhares e curiosidades. Nosso emaranhar naquela poltrona preta da Mercedes fez as linhas desse novelo se enlear ainda mais durante os festejos.


Descemos saltitantes no trevo de Ibiá, apesar de estar ainda meio acabrunhado. Era lema, nessa época, o despojamento, a sandália franciscana, os pés sujos e as ideias libertadoras na cabeça de cabelos despenteados e rostos barbados. Ah, como é bom ser jovem. Vigor, coragem e esperanças transbordavam de nosso pote de vida. Assim, borbulhando juventude, caminhamos até a casa da filha do prefeito.


Nossas vibrações, dos três, ressoaram como badalos de sinos. Entramos em uma espécie de estado de êxtase. Nossos ideais se entenderam. Passamos três dias grudados, agarrados, atracados uns aos outros. Era com se orbitássemos em nós mesmos. Passeios entre os trilhos do trem à tardinha, terminavam na madrugada com debates filosóficos de "alto nível".


Fomos cúmplices na "burguesia fede" e literalmente horrorizamos a classe política da cidade. Em uma grande festa da Nestlé, que há pouco instalara uma indústria local, os olhares dos convidados se voltaram todos para nós, os maltrapilhos e irreverentes. Nossos egos envaidecidos flutuavam sobre os rabos de olhos e cochichos mesquinhos. Ainda assim fomos presenteados com uma super caixa de bombons personalizada!

A autossuficiência era pura arrogância. Nada importava, só os três. Os velhos amigos de apenas três dias se bastavam.


Ciúmes do Carlos? Eu? Jamais... Medo? Não. Pavor... Já estava completamente apaixonado pela Lelê. A doce garota da saia indiana era muito mais do que o sonho de alguns meses atrás. Era muito mais perspicaz, mais inteligente, mais vibrante, mais linda, mais... Sua alma reluzia uma amorosidade infindável. Além do mais, sua energia combinava com a minha. Pelo menos, assim sentia. Queria-a só para mim. Egoísmo? Talvez não fosse evoluído o suficiente para partilhar o amor. Pânico? Carlos era filósofo. E eu? Um bobo! Não daria conta de me declarar. Fora jogado, por mim mesmo, à sorte.


Ah, a Lila? Voltei ao seu lado no ônibus. Sozinhos. Ela já não me interessava mais. Sentia-me livre de seu hipnotismo. Meu ser fora totalmente envolvido por aquela garota de mente aberta, corpo livre e beleza inebriante! Lelê ocupava agora todo o meu pensamento.


Assim, a vida! Atalhos no seu trilhar que nos passam despercebidos.


Imagem do post em <https://pin.it/34eS38t>


 

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Minha primeira grande viagem sozinho foi com amigos. Era "de maior", como se dizia na época, mas bem jovem. Tudo acertado, nos encontramos, os quatro, três rapazes e uma garota, no Posto Universal, na saída de Belo Horizonte. A primeira carona foi o maior sucesso: três na boleia e um na carroceira da Scania. Foi a única juntos em um mês de trilhas pelo país.


É incrível como o estar bem trás o bem. Atravessamos o nordeste de caminhoneiro em caminhoneiro, de estrada em estrada, de pessoa em pessoa. Fomos abraçados por gente que, só para fazer o bem, oferecia-nos qualquer coisa: um prato de comida, uma informação, um sorriso, uma palavra - "vá em frente, somos todos brasileiros". Desfrutei experiências de humanidade sem medidas nesse tempo. Tatuaram meu coração.


Nós, os quatro mochileiros, nos despedíamos uns dos outros, à porta do caminhão, com um grito:


- Nos encontramos em... Maceió!


Às vezes era eu quem dava esse grito outras, quem ficava. Não importava quem ia primeiro ou depois, sempre nos reuníamos.


Os reencontros eram recheados de deliciosas histórias. Cada um dos quatro, à sua maneira, colocava a vida na ponta do pé e preenchia com inteireza cada fração do tempo. Gargalhávamos com os causos. Juntos, instalados em albergues universitários, passávamos dias conhecendo praias, pessoas, e a nós mesmos! Depois, sola no asfalto.


O lema era: quanto mais distante de casa, mais feliz. Era como se o ímpeto da liberdade nos guiasse para além do horizonte. Rompíamos a abóboda imaginária a cada novo triunfo.


Estávamos em Fortaleza, quando um dos nossos, o mais velho, recebeu do orelhão uma promessa de emprego. Investimos quase toda nossa grana em duas passagens de ônibus para os dois: ele e ela.


Fiquei com o amigo. Era hora de regressar. A animação corria nas veias, no entanto, repentinamente, as oportunidades esconderam-se. Até parecia que a galáxia conspirava contra. Passamos dois dias naquele posto dando o velho "caô" nos motoristas.


- Somos universitários e estamos conhecendo o Brasil. Você poderia...


Apresentávamos a carteirinha de estudante e continuávamos: blá blá blá...


Nada. Até aqui tinha sido tão fácil. Esgotara-se nosso suprimento de sorte? Decidimos: juntos não daria. Vamos separados. No dia seguinte o vi entrando na cabine do Fenemê. Nessa hora a distância de casa meteu medo. As certezas vacilaram. A insegurança varreu a sentinela mascarada e escancarou o pânico. E se... Fiquei literalmente sem chão, sem amigo, sem apoio. Sozinho e longe pra caramba.


Ufa, algumas horas depois, o motorista disse


- Te levo 50 km.


Tão pouco! Topei. Não havia alternativa. A prosa boa me trouxe um pouco mais para perto de casa do que o previsto. Ainda assim, até o aconchego do ninho tinha muito chão para rolar.


Pensava: onde estaria meu amigo?


Existe portal de destino? Não sei. Só sei que avistei dois jovens terminando o almoço. Joguei o "caô" do universitário. Os paulistas foram com a minha cara. Entrei, meio sem acreditar, naquele Opala cinza de para-choque metálico. Foram três dias de viagem e só via os caminhões tartarugas pelo vidro de trás. Como me acolheram. A sobrinha da grana permaneceu amassada no bolso. Bancaram tudo.


Continuava pensando: onde estaria meu amigo?


Por volta das três da tarde faltavam poucos quilômetros para me despedir dos paulistas, na curva da estrada entre Belo Horizonte e São Paulo. O pneu furado do Opala nos levou ao acostamento. Alguém girava a manivela do macaco. Sentei-me a beira da estrada. A reta era longa. Avistei de longe uma carreta. Havia um pontinho na carroceria, em cima da lona, sobre a mercadoria. Fixei os olhos. Tornei-me em pé. Acompanhei. A carreta passou a uns 80 por hora. Fixei os olhos e aprumei os ouvidos. Bradei:


- Huhu, Serjão!!!


- Huhu...


Era ele, meu amigo. Incrédulo levantei os braços e acenei enquanto o ronco do motor se misturava à onda de choque de sua passagem. Seu grito ecoou infinitamente mesmo depois de esmaecer no cume da colina.


Chorei para mim de alegria.


Imagem do post em <https://pin.it/2xIsRRZ>

 

Textos - Gielton e Lorene / Projeto gráfico - Dânia Lima

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